A mancha de morte e desalento que o prefeito tatuou na cidade já o faz ser o pior entre os piores.
“Contribua com sua vida para que a gente salve a economia”, disse o prefeito Sebastião Melo (MDB) em transmissão no dia 25 de fevereiro - Giulian Serafim/PMPA
“Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A paisagem se mestiçara de tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca. Eram cores sujas, tão sujas que tinham perdido toda a leveza, esquecidas da ousadia de levantar asas pelo azul. Aqui, o céu se tornara impossível. E os viventes se acostumaram ao chão, em resignada aprendizagem da morte. ” Mia Couto em Terra Sonâmbula [1]
Pensávamos que Porto Alegre já teria sofrido todos os tipos de infortúnios, mas não. Os terríveis anos de governo Fortunati, e suas obras inacabadas, haviam sido sucedidos pela administração de Nelson Marchezan e seu mergulho radical na política neofascista e retrógrada do individualismo absoluto.
A base política de Marchezan Júnior se estabeleceu na articulação da extrema-direita da cidade em torno de uma retórica de rejeição à política, da caraterização da democracia como ineficiente, do culto aos valores neoliberais e de medidas de austeridade para as políticas sociais. Unificou a direita tradicional-conservadora, sobrevivente da ditadura militar, o empresariado de rapina organizado nas entidades do comércio e a nova direita reacionária, acionada pelo bolsonarismo.
A mancha de morte e desalento que o prefeito tatuou na cidade já o faz ser o pior entre os piores
Seus alvos centrais foram as políticas sociais do município. Nas áreas de educação, saúde, habitação e serviços sociais, os investimentos foram drasticamente reduzidos em torno de um discurso de eficientização de gastos, austeridade, responsabilidade fiscal, eliminação de privilégios e outras sandices neoliberais. Cortes na política de educação de jovens e adultos e nos cursinhos preparatórios ao vestibular para jovens de baixa renda, fim da segunda passagem no transporte coletivo, cortes na prestação dos serviços de saúde e de assistência social, foram os centros dos ajustes fiscal do governo Marchezan Júnior.
O então prefeito foi aprofundando a agressividade política e o sectarismo de suas manifestações. Progressivamente, episódio após episódio, investiu contra movimentos sociais, comunidades pobres, contra sindicatos de trabalhadores e servidores públicos. Rompeu, até mesmo, com vereadores de sua base de sustentação na Câmara Municipal da cidade. Ainda por cima, estabeleceu uma crise com seu vice-prefeito e seu partido de direita. Até mesmo bradou contra o fantasma das ‘ameaças comunistas’. Chamou opositores de babacas e por aí afora.
Tática tão sectária e fragmentadora, obviamente, não toleraria a ideia de democracia e participação comunitária. Em sua política, a elite econômica e suas personalidades jurídicas são os sujeitos que devem sentar-se à mesa das negociações sobre as políticas do município e a, derivada, alocação da renda pública. Movimentos sociais, culturais, comunidades pobres organizadas, foram vítimas de estigmatização e de deslegitimação política, sendo excluídas progressivamente das esferas de decisão e, mesmo, consulta. Obviamente que os mecanismos de controle público, participação política e de concertação social, que ao longo da história de Porto Alegre pós-ditadura de 1964 foram se incorporando à cultura política da cidade, se tornaram incômodos e foram tratados como obstáculos a serem removidos.
Assim, a desconstituição do “Orçamento Participativo”, o enfraquecimento dos conselhos populares e de políticas e a obstrução e impugnação de quaisquer processos de consulta pública, como audiências e plenárias, se tornaram uma obsessão ideológica, mas, fundamentalmente, também um imperativo tático para buscar diminuir a resistência a esse processo de transferência de renda pública dos mais pobres para os mais ricos.
O dito clássico do pessimismo popular, tão útil para os tempos atuais, “nada é tão ruim que não possa piorar”, parece sob medida para a situação. A administração de Marchezan Júnior foi substituída pela administração de Sebastião Melo.
Às políticas antipopulares de Marchezan Júnior, em parte descritas acima, se somou o rompimento da burguesia da cidade com seu governo a partir da posição de combate à pandemia do coronavírus, como razões de sua derrota eleitoral. Suas medidas de fechamento do comércio e de apoio ao distanciamento social descontentaram a burguesia, dos grandes aos lúmpens, da cidade e o colocaram em rota de colisão com a base negacionista do bolsonarismo e da extrema-direita. A ironia suprema da situação é que o golpe eleitoral, final, foi dado pelo pouco de virtude que apresentou nos seus quatro anos de governo.
Sebastião Melo fez movimentos para se credenciar como o candidato da extrema direita e da burguesia da cidade, no vazio de alternativa deixado pelo rompimento destes com o antigo prefeito.
Já na campanha eleitoral de 2020, Melo tornou públicos os horrores e estultices com os quais prometia governar para angariar o apoio do reacionarismo e da ganância, a fim de vencer as eleições. O antigo centrista, que quatro anos antes havia se apresentado como democrata, vinculado ao povo pobre da cidade e defensor da participação popular, agora se deslocou para a extrema direita, vociferando e deixando vociferar em seu nome coisas como “carne de cachorro” e “Venezuela”.
Desde sua posse, só fez aprofundar seu deslocamento do centro para a extrema direita. Deu as costas às orientações mais sensatas da comunidade científica e do sistema de saúde público e se aninhou com o negacionismo mórbido de Bolsonaro, oferecendo coquetéis de cloroquina e antiparasitários ao invés de reforçar o atendimento do SUS e lutar pela vacinação em massa. Atendeu ao reclame genocida da burguesia e se negou a controlar a circulação e o distanciamento social.
“Contribua com sua vida para que a gente salve a economia” disse o prefeito com objetividade mórbida e racionalidade genocida, típica da razão neoliberal, ao invés de enfrentar o tema da subsistência e do trabalho com programas de garantia de renda mínima, ajuda emergencial e de políticas de assistência. Os resultados são insofismáveis: foi com o colapso no sistema de saúde e o avanço da pandemia que se deram a queda econômica e aumento do desemprego.
Em apenas dois meses de governo Melo frente à Prefeitura de Porto Alegre, a mancha de morte e desalento que o prefeito tatuou na cidade já o faz ser o pior entre os piores.
Não impediu as aglomerações humanas, não se pronunciou pelo uso de máscaras, ofereceu falsas medicações, não teve qualquer iniciativa para ampliar a vacinação e não investiu na ampliação do atendimento de saúde. Demonstrou cinismo e falta de empatia, beirando a amoralidade. Até aqui, governou com subserviência aos poderosos e à onda neofascista. Sebastião Melo, enfim, apenas atende sonambulamente aos senhores da guerra que nos aflige.
[1] Romance do escritor Moçambicano Mia Couto publicado no Brasil pela Companhia das Letras em 2016. Um panorama de Moçambique após anos de guerra no país, da guerra anticolonial de 1965 a 1975, à guerra civil de 1976 a 1992. Trata dos sonhos, da esperança e da luta pela sobrevivência em meio aos horrores e desgraças que levaram mais de 1 milhão de pessoas à morte e outro tanto, maior ainda, ao desalento.
* Publicado originalmente no Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira
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