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Durante os governos Luís Inácio Lula da Silva (2003 a 2010) e Dilma Rousseff (2011 a 2014) o Brasil ampliou seu protagonismo político e econômico internacional. A base dessa ampliação se deu por uma política de relações internacionais baseadas na defesa da multilateralidade das relações internacionais. Tal política fortaleceu a perspectiva de liderança brasileira através da relação negativa com a unipolaridade exercida pelos Estados Unidos da América. A ampliação do protagonismo do Brasil se deu em um cenário e contexto de rompimento e erosão do consenso neoliberal na América do Sul, com a eleição de governos de centro-esquerda na Argentina, Uruguai, Bolívia, Equador, Paraguai e Venezuela, além, obviamente, do próprio Brasil. Com esses governos, a região retomou uma pauta de reestruturação do papel articulador do estado e de desenvolvimento das economias destes países, alicerçado no crescimento do mercado interno, do incentivo às empresas locais e de inclusão social, além de uma política externa cujo sentido foi o de revisar o alinhamento automático com a potência hemisférica hegemônica (LIMA, 2013, p. 181).
Neste ambiente de reversão do sentido hegemônico das relações internacionais na região, surgiram ou se consolidaram um conjunto expressivo de iniciativas de integração e regionalização, de caráter multipolar, os quais criaram dinâmicas econômicas e políticas que ampliaram, proporcionalmente, o poder de barganha dos estados sul-americanos. De modo global, as relações multipolares permitiram aos países emergentes, em via de regra, ampliar sua influência internacional na relação com os países desenvolvidos. A multipolaridade permitiu uma simbiose de objetivos entre os países emergentes e, em especial, credenciou o Brasil para um exercício de liderança regional e global relevante, ainda que limitado.
Trata-se de um reposicionamento no sistema internacional que busca alterar o peso do Brasil nas relações internacionais. Em um ambiente político institucional de questionamento da unipolaridade dos Estados Unidos, o Brasil vem empreendendo ações que lhe reposicionem gradualmente na arena global. Essas ações não possuem capacidade ou mesmo intencionalidade, segundo a retórica oficial do estado brasileiro, para uma grande ruptura desse sistema. Antes, trata-se de um esforço gradual de mudança ascendente de posições e aumento da capacidade política de influência e barganha. Assim, o multilateralismo e a questão do aumento da autonomia são conceitos centrais para compreender essa estratégia de reposicionamento, ou seja, de empreender um conjunto de estratégias que determinem a consolidação gradual e permanente de uma nova posição, de maior projeção e influência do que a imediatamente anterior.
[…] A ênfase se deslocou para formas de luta representadas pela segunda metáfora (guerra de posição), quando determinadas macro agregações de estados […], tentaram concretizar a fórmula da autossuficiência coletiva, além da negociação global e do multilateralismo […]. (CARNEVALLI, 2005, p. 57).
Este esforço de criação de uma área de autonomia na América do Sul fez com que o Mercosul e a integração do subcontinente fossem tratados com principalidade na política externa dos governos no período 2003 a 2014. Segundo Silva, “A política externa brasileira em relação ao em torno regional tem como prioridade a reconstrução do Mercosul e a integração sul-americana, criando um espaço para a liderança brasileira” (SILVA, 2014, p. 69).
A política de defesa assume relevância ainda maior em um contexto de maior inserção política do Brasil nas relações internacionais. De um lado, porque está associada ao conceito de que a uma maior projeção internacional deve corresponder uma maior capacidade de defesa e segurança; de outro, porque está associada à conquista de autonomia e independência tecnológica e industrial. Efetivamente, esta política de defesa permitiu a construção de uma agenda comum com os países sul-americanos, cujas premissas políticas são a autonomia da região e a consequente diminuição da influência das potências extra-regionais dos novos fóruns de integração. Assim, podemos considerar que as “[…] políticas externas e de defesa são complementares e indissociáveis” (BRASIL, 2012, p. 49).
Esta liderança de retórica não hegemonista foi sendo materializada através de mecanismos de parceria estratégica e complementação econômica, com a presença de capital brasileiro nas economias vizinhas, na abertura de linhas de financiamento através do banco estatal (BNDES), na ampliação de infraestrutura através de acordos como a Iniciativa de Integração Regional Sul-Americana (IIRSA), e em parcerias industriais, notadamente na área de defesa, além de maior iniciativa política nas articulações internacionais e na busca de acordos comerciais conjuntos com países fora da região. A complementariedade, seja no campo político ou no econômico, constitui-se, na política externa deste período, como estratégia de materialização da política de multipolaridade. Novamente segundo Silva, “Por meio da busca de complementariedade no continente, o Brasil procurou fortalecer-se econômica e politicamente” (2014, p. 69).
A cooperação industrial é chave nesta política externa assertiva do período. A complementariedade materializa a ideia de compartilhamento econômico, portanto, de distribuição de lucros, tributos e empregos entre as economias dos países desta aliança estratégica. Além do mais, permitiu ao Brasil diminuir a percepção da ideia de que quisesse substituir os Estados Unidos no papel de poder hegemônico, o que distanciaria o Brasil dos demais países da região. Já na abertura do documento Estratégia Nacional de Defesa, em sua introdução, o Governo Brasileiro busca afastar este obstáculo, esclarecendo que o Brasil não pretende a hegemonia na região: “O Brasil ascenderá ao primeiro plano no cenário internacional sem buscar hegemonia. O povo brasileiro não deseja exercer domínio sobre outros povos. Quer que o Brasil engrandeça sem imperar” (BRASIL, 2012, p. 41).
Com esse compartilhamento, o Estado brasileiro pretendeu criar condições políticas, nas relações externas, para o aumento da presença e do exercício da liderança regional. Se a política externa se orienta a produzir percepções e interpretações sobre os demais Estados (SAINT-PIERRE, 2013, p. 28), essa é a percepção que o Estado brasileiro quer produzir sobre seus vizinhos sul-americanos, o de liderança cooperativa para um desenvolvimento compartilhado. Trata-se de um esforço em oferecer uma liderança de sentido contrário ao padrão usual da liderança hegemônica. Se o esforço de hegemonia de uma potência se caracteriza pela universalização de seus valores e interesses econômicos, o esforço de construção de uma nova liderança é perseguido pelo surgimento de um questionamento a esses valores e interesses. Falamos de uma promessa de contra hegemonia, não no sentido de uma substituição de hegemonia, mas de alteração da agenda hegemônica dos interesses singulares da potência dominante para a agenda dos interesses comuns. A proposta de uma política de autonomia regional não possui a capacidade de rompimento desta hegemonia, mas inflexiona para uma agenda de maior independência e maior barganha.
A relevância da integração e da cooperação com a América do Sul
A estratégia central da política exterior foi a de criar uma zona de autonomia em relação à potência hegemônica na América do Sul (SVARTMAN, 2014, p. 54). Os Estados Unidos têm um histórico de hegemonia sobre o Hemisfério Ocidental e possui uma política de obstaculizar a emergência e a articulação de potências regionais em sua área de influência. A estratégia estadunidense para a manutenção de sua liderança se baseia na imposição de regimes democrático-liberais, integração econômica subordinada dos países do hemisfério, na manutenção da liderança tecnológica e alta capacidade de projeção de força militar e na projeção de natureza ideológica (GUIMARÃES, 2005).
Obviamente, o Brasil não possuía, e não possui, condições operacionais, capacidade militar e envergadura econômica suficientes para impor este conceito de distanciamento e autonomização em relação aos seus vizinhos e, tampouco, à própria potência global hegemônica, os Estados Unidos.
Assim, foi a soma de um conjunto de variáveis que permitiu o surgimento desta agenda de uma zona de autonomia e liderança na América do Sul, com relativa liberdade de movimentação política para os países da região. No que diz respeito às movimentações dos Estados Unidos, sua crise político-econômica, em especial nos anos 2005 a 2011, a reorientação de seu foco em direção ao Oriente Médio, derivada da “guerra ao terror”, a falta de oferta de políticas positivas para a região e uma relativa perda de influência global com a criação de fóruns multilaterais abriu uma espécie de brecha de liderança na região. O que, mais recentemente, o governo Barack Obama tenta balancear (PECEQUILO, 2012, p. 53-56).
Por sua vez, o Brasil viu sua capacidade de trânsito político-global desobstruída em função do crescimento econômico deste período do século XXI, da ampliação de suas reservas energéticas, em especial a partir do anúncio da descoberta do manancial petrolífero do pré-sal, e uma política assertiva no plano internacional, a qual lhe fez ocupar posição de protagonista na criação de mecanismos de contraposição e balanceamento à hegemonia dos Estados Unidos, como a Unasul e, após, o Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS), ambos em 2008, além da integração, ao Mercosul, primeiro da Venezuela, em 2006, e após da Bolívia, em 2012, o que fortaleceu o bloco a despeito de todas as tensões.
A pauta de atrito também foi um fator de afirmação da liderança brasileira na região. Balanceando ora com agendas conflitantes com os Estados Unidos – como na crise de Honduras e no Irã, quando do acordo nuclear tripartite envolvendo Brasil, Turquia e Irã –, ora como interlocutor e mediador entre os Estados Unidos e os demais países da região, em especial com a Venezuela, a qual possui uma retórica política mais agressiva, o Brasil fez crescer sua importância política regional com trânsito global, tornando-se protagonista das coalizões e fóruns regionais que criaram este espaço autônomo dos países da América do Sul. O crescimento da liderança regional brasileira, ao ponto de tornar-se um protagonista global, está condicionado também pela crescente estruturação, industrialização, complexificação e crescimento da economia nacional que lhe permitiu ganhar estágios no processo de autonomia e distanciamento da liderança estadunidense (AMORIM NETO, 2011, p. 171).
A cooperação e a integração foram as estratégias centrais na relação do Brasil com os países sul-americanos, em seu esforço de construção de uma área de autonomia política na região, a partir de uma orientação mais assertiva da política externa brasileira, a qual pode se materializar devido à envergadura da economia nacional.
O esforço de construção de um espaço de liderança do Brasil, no continente, está assentado na ideia da legitimação pelo consentimento dos demais sobre esta liderança regional. A confiança passou a ser uma premissa chave nestas relações e para este objetivo estratégico. Segundo Lima, “Nesse contexto, ampliaram-se as possibilidades de exercício de políticas externas com maior grau de autonomia em relação ao centro e mesmo de natureza claramente anti-hegemônicas” (LIMA, 2013, p. 167).
A política do Brasil para a América do Sul é essencial na projeção mundial do País, uma vez que o continente é a área de ação da política externa brasileira. Fica claro o esforço da política externa brasileira no sentido de fortalecer e estimular a emergência de um sistema mundial multipolar, no qual a América do Sul venha a constituir um dos polos e onde os Estados Unidos tenham baixa ou menor influência do que na atualidade (GUIMARÃES, 2005, p. 275). Para isto, é necessária uma ampliação da cooperação, com a decorrente diminuição da competição entre os países do subcontinente, em especial em relação à Argentina, maior economia regional depois da brasileira.
A análise das relações econômicas entre o Brasil e os demais países sul-americanos demonstra que as atividades e relações privadas não têm, na América do Sul, seu principal, muito menos único, centro de negócios. Resta eminente que o processo de integração é derivado de uma decisão político-institucional, a qual incide para organizar a todas as demais relações regionais (COUTO, 2013, p. 201-204).
Esta dimensão, ao contrário de enfraquecer, robustece a compreensão sobre o caráter estratégico, para a política brasileira, da integração regional da América do Sul. O estado brasileiro capitaneia esta integração, constituindo agendas e políticas que, em sequência, materializem esta integração, como os já mencionados Iniciativa de Integração Regional Sul-Americana (IIRSA), e as propostas de integração de defesa, como o Conselho de Defesa Sul-Americano (CDA).
A cooperação industrial como uma dimensão operacional da política de relações externas
A política externa brasileira na região apoiou-se nas premissas da cooperação e integração como forma de fortalecer sua liderança e, com isso, ampliar sua capacidade de barganha em relação aos países desenvolvidos e seu espaço econômico, ampliando a presença dos grandes conglomerados brasileiros no exterior, as trocas comerciais e seu papel de agente financiador de infraestrutura regional (SILVA, 2015, p. 165). A ideia de interdependência econômica entre os países da região, e a vinculação determinante entre o desenvolvimento do Brasil e dos vizinhos, embasa o esforço de “[…] criar mercados regionais operados pelas empresas ali estabelecidas” (LIMA, 2013, p. 192), base distintiva do modelo de cooperação defendido pela política externa brasileira no período. Esta política assume dimensões estratégicas, pois reúne o que Lessa & Oliveira (2013, p. 11) consideram sejam os requisitos fundamentais de uma relação desta categoria: a produção de condições para a consecução da estratégia nacional de desenvolvimento e a capacidade de relativizar a dependência econômica.
Ramanzini (2013, p. 165) detalha conceitos que ajudam na definição de que esta política de construção de uma zona de autonomia sul-americana, sob liderança brasileira, e a utilização dos instrumentos da cooperação para realizá-la tem caráter estratégico. Quando esta parceria se pauta pela finalidade da autonomia e do desenvolvimento, torna-se contributiva para o aumento da capacidade de manobra e barganha no sistema internacional. Pois este é o caso: a condição do Brasil de maior economia da América do Sul e a progressiva (ainda que não estável) condição de liderança política fazem com que os demais países do sistema internacional enxerguem o País – tanto no sentido horizontal das relações sul-sul com os países emergentes e os vizinhos regionais, quanto em sentindo vertical com os países ricos e desenvolvidos – como protagonista capaz, ao menos relativamente, de interferir, acordar, interditar e impactar negociações no âmbito dos estados.
A capacidade de construção de parcerias estratégicas e blocos regionais concedeu ao Brasil o tão desejado espaço internacional para o desenvolvimento e crescimento econômico. Assim, permitiu dar racionalidade ao esforço de construção de uma agenda alternativa de políticas de crescimento econômico para a região, que lhe confere legitimidade frente aos seus vizinhos. Esta legitimidade está alicerçada na ideia da cooperação para o desenvolvimento doméstico e da construção de bens públicos regionais em uma espécie de compartilhamento da prosperidade econômica na região. A integração nas políticas de defesa é fundamental para a continuidade e alargamento desta legitimidade. A Estratégia Nacional de Defesa (END), em sua décima oitava (18ª) diretriz, estabelece o valor da integração sul-americana, o sentido dessa integração e da cooperação e consagra um objetivo permanente do País: estimular a integração da América do Sul.
Essa integração não somente contribui para a defesa do Brasil, como possibilita fomentar a cooperação militar regional e a integração das bases industriais de defesa. Afasta a sombra de conflitos dentro da região. Com todos os países, avança-se rumo à construção da unidade sul-americana. (BRASIL, 2012, p. 58).
A política de defesa do Brasil, neste ambiente onde a posição do governo é de que o peso da decisão político-institucional tem proeminência sobre as relações econômicas privadas, tornou-se chave no esforço de formação da percepção dos estados vizinhos sobre as intenções brasileiras. O desenvolvimento da capacidade militar foi apresentado como um esforço de desenvolvimento econômico e capacitação tecnológica a ser compartilhado com os vizinhos como demonstração da disposição cooperativa e não hegemonista da parceria brasileira. No Livro Branco de Defesa Nacional, a retórica oficial brasileira expõe o paradigma da relação com a América do Sul, afirmando que:
Na América do Sul delineia-se uma clara tendência de cooperação em matéria de defesa. Esta tendência tem sido constantemente reforçada desde a criação da União das nações Sul-Americanas (UNASUL) e, especialmente, do seu Conselho de Defesa (CD). (BRASIL, 2012, p. 29).
A integração da indústria de defesa surge como uma oferta de compartilhamento do progresso e do desenvolvimento e, simultaneamente, como comprovação das intenções não hegemonistas ao mesmo tempo em que criam as condições operacionais para a construção da zona de exclusão das potências extra-regionais. Como prescreve a Estratégia Nacional de Defesa (END) em suas orientações: “A integração da indústria de defesa sul-americana deve ser objeto de medidas que proporcionem desenvolvimento mútuo, bem como capacitação e autonomia tecnológica” (BRASIL, 2012, p. 32).
A busca pela assimilação e desenvolvimento de capacidade e autonomia tecnológica dos materiais de defesa e sua repercussão sobre o desenvolvimento industrial geral são invariáveis presentes nas parcerias estratégicas do Brasil (SILVA, 2015, p. 166). A busca pela densificação tecnológica da economia brasileira tem o sentido desenvolvimentista da superação do atraso em inovação derivado do cerceamento tecnológico, no sentido de superar o bloqueio e a negação ao acesso e à posse de conhecimento e tecnologias, imposto pelas potências detentoras do conhecimento e da capacidade industrial de produção independente (LONGO; MOREIRA, 2010, p. 310). Assim, assume grande valor e desperta interesse o desenvolvimento de políticas estruturantes e mobilizadores para a capacitação da indústria de defesa, para a produção de bens e serviços de alto conteúdo tecnológico e valor estratégico.
Aponta, nesse contexto, a base industrial de defesa como um pilar central de um novo ciclo de industrialização da economia nacional, baseado em setores intensivos em conhecimento e inovação, que possibilitaria reverter a tendência das últimas décadas de queda da participação da indústria no PIB (passou de 25% em 1985 para 10,5% em 2013). (MELO, 2015, p. 198).
Esta integração tem se realizado pela ampliação do fluxo comercial dos produtos e bens de defesa entre os países da região, seja de forma direta ou indireta. Ou seja, direta na compra e venda de produtos de defesa de média ou baixa densidade tecnológica; ou indireta, envolvendo os países sul-americanos como parceiros industriais de acordos bilaterais que o Brasil tenha feito ou venha a fazer com países extra-regionais. Paradigmático deste envolvimento em projetos globais onde o Brasil é líder político e industrial é o projeto do avião de transporte militar KC-390, onde uma empresa brasileira, a EMBRAER, é líder industrial, mas outras empresas de diferentes países participam do programa: Argentina, República Tcheca e Portugal. Nesse caso, a indústria argentina está envolvida nesta parceria de coprodução, além de parceiro comercial.
Os países da América do Sul, entretanto, não oferecem alta capacitação tecnológica à indústria brasileira, possuindo menor capacidade de desenvolvimento tecnológico, o que significa dizer que, se não suprem totalmente as deficiências de conhecimento instaladas no Brasil, possuem média capacidade acumulada, o que faz com que as possibilidades de trocas de conhecimento não sejam desprezíveis. A América do Sul surge, então, muito mais como um mercado consumidor dos produtos de defesa, essencial para dar escala produtiva e relativizar os custos, tanto da produção como do desenvolvimento (BRASIL, 2012, p. 61), restando ao Brasil buscar essa absorção tecnológica de alta complexidade em parcerias de caráter estratégico com países emergentes extra-regionais, como Índia, África do Sul e Suécia, e potências sem pretensão hegemônica sobre o Brasil, como a França. Contudo, o fato de a América do Sul ser, hoje, mais um mercado consumidor do que um centro desenvolvedor de alta tecnologia, não lhe diminui a importância estratégica para o estado brasileiro, como reafirmam os documentos de defesa brasileiros. O sentido de construção de área autônoma e a projeção do desenvolvimento regional apontam para uma potencialidade econômica forte, desde que haja continuidade, integração e complementariedade nesta política de desenvolvimento regional.
Esta integração regional torna as parcerias estratégicas com o Brasil bastante interessantes aos países mais desenvolvidos com problemas de escala em seu círculo consumidor. A crise econômica dos países desenvolvidos nos anos 2000 e a competição entre eles abriu espaço para os emergentes, como o Brasil, ampliarem suas relações assimilando capacidades. Entretanto, a manutenção desta articulação sul-americana está vinculada à disposição do Brasil em distribuir estes benefícios entre os países do bloco.
Esta estratégia de liderança cooperativa é essencial para a diminuição da tensão e da contenção de movimentos de obstrução à essa integração e à liderança pretendida pelo Brasil, que os demais países poderiam, eventualmente, efetivar. Em sua projeção de liderança, é essencial que o Brasil seja protagonista desta integração regional de modo a ser percebido, pelas potências extra-regionais, pelos demais países emergentes e por outros países não desenvolvidos, como liderança do bloco. A integração e a liderança cooperativa agruparam, não de forma automática, os países sul-americanos ao Brasil e o Brasil aos vizinhos, através de acordos de cooperação materiais e concretos.
Esta política de integração em assuntos de defesa se deu através do compartilhamento de soluções que visam à autonomia regional. Para obtê-la, o país efetivou um conjunto de acordos que partilharam conhecimentos e capacidades já obtidas pelo Brasil. Este esforço caracteriza uma disposição, ainda que não estável ou contínua, de distribuir bens entre os vizinhos e de atraí-los para a estratégia da autonomia regional.
País de maior economia na região (ver Quadro 1) e com a maior complexidade na sua base industrial, o Brasil assumiu a liderança propositiva no sentido da execução de parcerias industriais na área de defesa. Estas parcerias cooperativas se dão através da combinação de diferentes estratégias. Uma delas é a das exportações, onde o grande destino dos produtos de defesa é a América do Sul, respondendo por mais da metade das exportações brasileiras do setor. Segundo dados do Comdefesa (2012), ao longo da última década, os países da região absorveram 56% das exportações brasileiras de equipamentos militares, contra 25% no período 1980-1989 e 11% no período 1990-1999. Outra estratégia são os mecanismos compensatórios como as compras recíprocas, onde o Brasil busca comprar material de defesa produzido nos países vizinhos a título de desenvolvimento da indústria dos países parceiros, cujo claro exemplo é o da compra de lanchas patrulhas colombianas para a defesa da Amazônia.
Quadro 1 – Ordenamento dos países pelo tamanho da economia
País | Produto Interno Bruto em bilhões US$ em 2013 |
Brasil | 2,416 |
Argentina | 771 |
Colômbia | 527 |
Venezuela | 407 |
Peru | 344 |
Chile | 335 |
Equador | 158 |
Bolívia | 59 |
Uruguai | 56 |
Paraguai | 46 |
Suriname | 7 |
Guiana | 7 |
Fonte: Index Mundi (2015).
Também têm sido utilizados para esta integração e complementariedade as doações de equipamento para as forças armadas de menor porte, como os casos do Paraguai, Uruguai, Bolívia e Equador. Outros expedientes de maior teor na troca de conhecimento têm sido as parcerias de serviços, como a transferência de tecnologia e conhecimento para a indústria colombiana modernizar aviões “Tucano”, comprados pela Força Aérea Colombiana junto à empresa brasileira EMBRAER. As maiores possibilidades, contudo, estão nos projetos de coprodução, como a parceria com a indústria Argentina (Fábrica Argentina de Aviões) e a indústria brasileira (EMBRAER), líder do projeto, para a produção do cargueiro militar KC-390. As parcerias passaram a se materializar a partir de um conjunto de acordos bilaterais que foram abrindo caminho para projetos concretos de parceria e complementariedade na produção industrial, exemplos são os acordos quadro de cooperação em matéria de defesa com a Argentina (2005), Peru (2006), Chile (2007) e com o Paraguai (2007). Efetivamente, muitos desses projetos deram passos significativos no período. A Declaração de Buenos Aires, de setembro de 2013, entre os Ministros da Defesa de ambos os países, atualizou o interesse sobre os projetos de cooperação industrial, reafirmando o caráter estratégico da cooperação bilateral, ao mesmo passo que almeja o desenvolvimento de uma base industrial sul-americana.
Subrayaron el carácter estratégico de la cooperación Argentina-Brasil en el marco más amplio del establecimiento de una base industrial de defensa en Suramérica. En ese sentido, saludaron el esfuerzo de buscar no solo el intercambio comercial de los equipos producidos en cada país, sino también la importancia de proyectos conjuntos en el desarrollo de nuevos productos. Se mencionaron en tal sentido el sector naval, terrestre, aéreo y espacial. (ARGENTINA, 2013).
Com efeito, vários projetos foram desenhados no período. Com a Argentina, estabeleceu-se a compra dos blindados brasileiros Guarani, possível aquisição de aeronaves de vigilância e sensoriamento remoto da Embraer, a coprodução do veículo militar leve Gaúcho, e o compartilhamento da construção do cargueiro militar KC-390. Com a Colômbia, Peru e Chile há o interesse em cooperar nas áreas de construção e sistemas navais. Há ainda os projetos de desenvolvimento e produção de um avião de treinamento básico sul-americano, cujo nome emblematicamente é Unasul I (CDS, 2014a) e um Veículo Aéreo Não Tripulado-VANT (CDS, 2014b). No primeiro projeto, estão envolvidos, além da Argentina e do Brasil, a Colômbia, o Equador, o Uruguai e a Venezuela. No projeto do VANT, o planejamento se dá com todos os países componentes do Conselho de Desenvolvimento Sul-Americano.
Considerações Finais
Em contexto internacional altamente conflitivo, de grande questionamento da hierarquia política internacional e de múltiplas polaridades, o Brasil cresceu, neste período dos anos 2000, em seu protagonismo internacional legitimado por um forte ativismo na formação de alianças e blocos que questionaram a hegemonia dos países ricos. Esta legitimação baseou-se, também, na formação de um bloco regional na América do Sul, que teve por efeito obstruir as movimentações, antes livres da potência hemisférica (os Estados Unidos), como também ampliar a diversidade de relações, acordos e alianças deste bloco regional. Tal política de constituição de uma zona autônoma pareceu interessar, em maior ou menor escala, a todos os países sul-americanos, uma vez que o aumento da autonomia política, efetivamente, produz ganhos como o aumento da capacidade de barganha nas negociações extrarregionais, em especial com as grandes potências globais e seus blocos.
No contexto da criação da União das Nações Sul-Americanas (UNASUL) e do Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS), a agenda de defesa cresceu em relevância e se tornou resolutiva na consecução das intenções de integração. A cooperação industrial na área de defesa assumiu um papel proeminente porque atraiu os interesses dos estados sul-americanos no compartilhamento do desenvolvimento econômico e tecnológico oferecido pelo Brasil. Tal desenvolvimento é derivado tanto do conhecimento e da capacidade que o Brasil já possuía, quanto do desenvolvimento que se oportuniza das parcerias estratégicas que o Brasil firmou com países fora da América do Sul. Para poder oferecer tal benefício efetivamente, o Brasil reuniu, durante o período de 2003 a 2014, as condições econômicas que fizeram por despertar tal interesse.
A dimensão de sua economia, se comparada a dos vizinhos, sua base industrial de defesa e seu programa político-institucional, lhe criaram maior espaço político e diplomático no sistema internacional, atraindo o interesse das potências extrarregionais, as grandes e as médias, a consolidação do bloco com Rússia, Índia, China e África do Sul (BRICS), as parcerias estratégicas com a França e Suécia e a sempre complexa, mas permanente, parceria com os Estados Unidos tornaram o Brasil altamente atrativo para os seus vizinhos regionais, todos de menor porte econômico. O país exerce uma condição de liderança política porque entrou no clube dos países emergentes e ativos politicamente no sistema internacional. A estrutura econômica e a legitimação exógena do Brasil credenciaram-no a exercer esse papel proeminente, de liderança consentida, no subcontinente sul-americano.
A estratégia de compartilhamento do desenvolvimento industrial de produtos de defesa serviu à desobstrução do caminho do Brasil no sentido de um maior protagonismo internacional, da implementação de sua política mais assertiva, no sentido da maior integração com os países da região, aumentando-lhe a liderança política no sistema das relações internacionais entre estados e ampliando o espaço para seu desenvolvimento econômico.
A combinação de diferentes estratégias de integração e complementação econômica e industrial é o que materializou esse papel instrumental e estratégico da indústria de defesa nesse modelo de integração política. O uso combinado de exportações de equipamento, mecanismos compensatórios como as compras recíprocas, as doações de material de defesa para as forças armadas de menor porte e as parcerias de serviços com a decorrente transferência de tecnologia, criaram as condições concretas para essa política regional sobre os países da América do Sul. Esta política de acordos de cooperação em defesa deu materialidade à integração regional em uma agenda estratégica. Mais do que isto, esta pactuação deu um grau de ineditismo e extraordinariedade à integração sul-americana.
A realidade dos tempos atuais – a crise econômica mundial, a crise política de hegemonia política, a crise fiscal do Governo Brasileiro e a emergência de um governo de extrema direita – é de corrosão da integração continental e uma ruptura com a política externa de multipolaridade. O que significou uma descontinuidade dessas políticas. Se não bastassem esses fatores, em todo o subcontinente acompanha-se um forte embate contra forças políticas que, igualmente contribuíram para modificar as prioridades nas parcerias estratégicas e na densidade do envolvimento com a integração regional.
O Brasil parece reunir um conjunto bastante razoável de condições objetivas para superar suas vulnerabilidades e retomar sua política de autonomização e integração da América do Sul. No sentido desta superação, o desenvolvimento de uma base industrial de defesa autônoma e capaz é de fundamental valor. Mais ainda se associada a um projeto de integração regional, entendido como uma estratégia de ampliação de poder nacional comum, capaz de conferir autonomia de decisão e influência política no cenário internacional para os países sulamenricanos..
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Documentos Oficiais e Matérias Jornalísticas
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______. Declaração de Buenos Aires dos Ministros da Defesa do Brasil e Argentina. 2013. Disponível em: <http://www.defesanet.com.br/br_ar/noticia/12270/BR-AR—DECLARACION-DE-BUENOS-AIRES-DE-LOS-MINISTROS-DE-DEFENSA-DEL-BRASIL-Y-ARGENTINA/>. Acesso em: 25 nov. 2015.
BRASIL. Decreto nº 5484, de 30 junho de 2005. Aprova a Política de Defesa Nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Decreto/D5484.htm>. Acesso em: 01 jul. 2015.
______. Ministério da Defesa. Estratégia Nacional de Defesa. Brasília, DF, 2012. Disponível em: <http://www.defesa.gov.br/arquivos/estado_e_defesa/END-PND_Optimized.pdf>. Acesso em: 01 jul. 2015.
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______. Ministério da Defesa. Política Nacional de Defesa. Brasília, DF, 2012. Disponível em: <http://www.defesa.gov.br/arquivos/estado_e_defesa/END-PND_Optimized.pdf>. Acesso em: 01 jul. 2015.
______. Ministério da Defesa. Portaria Normativa 899, de 19 de junho de 2005. Aprova a Política Nacional da Indústria de Defesa. Brasília, 2005. Disponível em: http://www.defesa.gov.br/arquivos/File/legislacao/emcfa/publicacoes/pnid_politica_nacional_da_industria_de_defesa.pdf. Acesso em: 01 jul. 2015.
CHILE. Acordo-Quadro em Matéria de Defesa. 2007. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Decreto/D7396.htm>. Acesso em: 25 nov. 2015.
COLÔMBIA. Brasil compra lanchas da Colômbia para defesa fluvial. 2012. Disponível em: <http://g1.globo.com/mundo/noticia/2012/05/brasil-compra-lanchas-da-colombia-para-defesa-fluvial.html>. Acesso em: 20 nov. 2015.
COMDEFESA. Integração Sul-Americana em Defesa: perspectivas e desafios. Análise Comparada. São Paulo, n. 1, 2012.
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CDS. Unasul I: um passo rumo à integração regional sul-americana. 2014a. Disponível em: <https://onial.wordpress.com/2014/07/11/unasul-i-um-passo-rumo-a-integracao-regional-sul-americana/>. Acesso em: 20 nov. 2015.
______. Países da UNASUL se reúnem para definir projeto de VANT regional. 2014b. Disponível em: <http://www.aereo.jor.br/2014/09/03/paises-da-unasul-se-reunem-para-definir-projeto-de-vant-regional/>. Acesso em: 20 nov. 2015.
INDEX-MUNDI. Ordenamento dos países pelo tamanho da economia 2015. Disponível em: <http://www.indexmundi.com/>. Acesso em: 25 nov. 2015.
PARAGUAI. Acordo-Quadro em Matéria de Defesa. 2007. Disponível em: <http://dai-mre.serpro.gov.br/atos-internacionais/bilaterais/2007/b_82/>. Acesso em: 25 nov. 2015.
PERU. Acordo-Quadro em Matéria de Defesa, 2006. Disponível em: <http://dai-mre.serpro.gov.br/atos-internacionais/bilaterais/2006/b_157/>. Acesso em: 25 nov. 2015.
* Publicado originalmente no no site Democracia e Direitos Fundamentais – DDF.
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