Pouco se fala da reforma democrática do Estado, mas dela muito dependeremos para um novo Brasil.
"As reformas tributária, agrária e da política macroeconômica quanto a reversão de “reformas neoliberais” como a trabalhista e a da Previdência, tendem a ser freadas se não houver um esforço reformista democrático sobre o aparelho de Estado" - Edilson Rodrigues/Agência Senado
Com o fim da ditadura e a consolidação do sistema democrático no Brasil, houve certa mitificação sobre o caráter do aparelho de Estado. Uma ideia de que com a democracia a justiça se imporia por si, através de sua superioridade moral sobre os abusos e crimes contra os direitos humanos próprios das ditaduras.
A Constituinte de 1987-1988 acabou por refletir esta onda de euforia com a ideia democrática e passou ao largo de qualquer revisão dos aspectos autoritários da formação do Estado brasileiro. A Constituinte gravou na Constituição federal de 1988 princípios de autonomia das agências estatais sem que sobre elas fosse feita uma revisão sobre o domínio de classe ao qual elas estão submetidas.
Um efeito dessa aposta acrítica na autonomia do Estado sobre a sociedade, observamos entre 2016 e 2018, quando agências estatais foram o mecanismo de frente de um processo golpista contra a decisão eleitoral soberana, ou seja, contra um dos axiomas básicos do sistema democrático. Esta autonomia de um aparelho de Estado permitiu o aprofundamento de seu caráter classista.
Se considerarmos que a existência de um sistema democrático não é suficiente por si para garantir uma democracia de igualdade, poderemos considerar a ampliação da influência dos aparelhos hegemônicos do empresariado, do pensamento neoliberal e das organizações e lideranças de direita sobre os aparelhos de Estado uma consequência política provável. Ao longo das décadas pós-Constituinte os valores e políticas neoliberais consolidaram sua hegemonia sobre o Estado. Em especial sobre aquelas agências vinculadas com a gestão econômica e financeira do país. Temas como superávit primário, equilíbrio fiscal, controle de gastos, manutenção de juros altos, imunidades tributárias, isenções sobre rendimentos e lucros passaram a ser incorporados ao senso comum como técnicas de gestão neutras e inevitáveis. Como boa gestão!
A instrumentalização de ferramentas normativas do Estado Democrático de Direito se torna comum quanto mais os direitos universais se implantam e os movimentos sociais e vinculados às classes trabalhadoras conquistam espaço. Quanto mais perto da universalidade o sistema democrático chega, mais o aparelho de Estado se move no sentido de frear tal evolução.
Tanto as reformas tributária, agrária e da política macroeconômica quanto a reversão de “reformas neoliberais” como a trabalhista e a da Previdência - tão fundamentais para a reversão da crise e da exploração - tendem a ser freadas se não houver um esforço reformista democrático sobre o aparelho de Estado. Caso agências estatais como o Ministério Público, o sistema de Justiça, o Banco Central, o sistema de espionagem, as Forças Armadas e o governo de conjunto não estejam submetidos a controles sociais, participação social e medidas de transparência e conferência, continuarão a agir em favor do capital financeiro e dos interesses antissoberanos. A reforma das reformas é necessária!
"Pouco se fala da reforma democrática do Estado, mas dela muito dependeremos para um novo Brasil"
A reforma democrática do Estado, a constituição de mecanismos efetivos de transparência, processos participativos de construção de políticas públicas, a subordinação da autonomia de agências estatais ao acompanhamento e controle social são fundamentais para viabilizar as reformas que, necessariamente, irão contrariar interesses das classes dominantes e da fração rentista hegemônica. Essa é uma reforma de que pouco se fala, mas dela muito dependeremos para um novo Brasil.
* Publicado originalmente no Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko
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