Jorge Branco*, Juliana Botelho Foernges** e Patrícia Rocha***
Sociólogo. Mestre em Ciência Política (UFRGS). *Advogada. Mestra em Ciência Política (UFRGS). ***Socióloga. Mestra em Ciência Política (UFRGS).
O processo de democratização, descrito por Samuel Huntington (1994) como parte da “terceira onda” de democratizações, alterou profundamente os sistemas políticos de diversos países, que, ao serem incorporados a esse processo hegemônico, passaram a adotar a democracia liberal como regime de governo. No Brasil, assim como em outros países da América Latina, o processo eleitoral tornou-se um elemento central dessa transição, desempenhando um papel institucional na construção da democracia formal. A Constituição Brasileira de 1988 estabelece em seu texto os princípios fundamentais, direitos e garantias dos cidadãos, incluindo as eleições como uma expressão legítima da soberania popular, por meio do sufrágio universal com voto direto, secreto e de igual valor para todos. Sob a perspectiva institucional, essa implementação marcou um avanço significativo, consolidando a transição democrática e posicionando o Brasil dentro da dinâmica de democratização.
No entanto, apesar desse avanço institucional, a democracia, na grande maioria do globo, ainda enfrenta obstáculos e, até mesmo, impugnações significativas em sua efetivação para além dos aspectos meramente procedimentais. A persistência de desigualdades sociais e econômicas, o aprofundamento da apropriação privada do Estado e a crescente desconfiança nas instituições políticas limitam a concretização de uma democracia substantiva, na qual os cidadãos realmente se sintam representados e engajados no processo político. Além disso, o sistema eleitoral, embora funcional, ainda carece de mecanismos que garantam maior inclusão e participação política, especialmente para grupos historicamente marginalizados, como os povos indígenas, a população negra e as camadas mais pobres da sociedade. Porém, não é somente o sistema eleitoral que necessita transformações para a consolidação da democracia de garantia de direitos.
Também as instituições do regime democrático precisam aprofundar seu sentido cívico e comunitário, em detrimento de aspectos privados. A democracia brasileira, em especial, permanece em uma situação de consolidação, na qual os direitos fundamentais, garantidos pela Constituição de 1988, ainda precisam ser plena e efetivamente implementados para que a soberania popular e as ideias de igualdade e equidade possam emergir e se tornar conceitos de democracia hegemônicos.
No campo teórico, desde o século XIX, o tema da democracia vem sendo debatido e analisado a partir de diferentes perspectivas ideológicas, cada qual oferecendo uma interpretação sobre o que constitui uma democracia efetiva e funcional ou até mesmo desejável. Uma das abordagens mais difundidas é a concepção liberal minimalista, que se concentra na representatividade e na limitação da participação dos cidadãos ao ato de eleger seus representantes (Schumpeter, 1984; Dahl, 1989).
Joseph Schumpeter (1984) propõe uma definição procedimental de democracia, na qual ela é essencialmente vista como um método para chegar a decisões políticas. Nesse modelo, a democracia é um sistema onde os indivíduos adquirem o poder de decisão por meio de uma luta competitiva pelo voto do povo. Assim, o processo democrático é entendido principalmente como uma competição entre elites políticas. Estabelece-se, a partir desta teoria, uma interpretação segundo a qual a democracia é vista como um mecanismo eficiente para a seleção de governantes, mas não necessariamente como um meio para a participação direta e contínua dos cidadãos na governança.
A concepção de Schumpeter faz crítica ao que se denomina de “teoria clássica” da democracia, destacando o desinteresse geral dos cidadãos pela política, a menos que sejam diretamente afetados. Ele argumenta que, mesmo com muita informação disponível, as opiniões públicas são facilmente manipuladas pela propaganda. Além disso, Schumpeter rejeita a ideia de um “bem comum” universal, afirmando que a diversidade de valores e desejos entre as pessoas impede o consenso. Mesmo com preferências coletivas claras, diferentes grupos sociais interpretariam questões de formas variadas, impossibilitando a concordância total (Gama Neto, 2011).
Ao introduzir o conceito de poliarquia (grifo nosso), Dahl (1989) amplia a discussão sobre democracia. Nessa óptica, além de eleições livres e justas, pressupõe-se liberdade de expressão, o direito de formar associações independentes e o acesso a diversas fontes de informação. No entanto, mesmo nesse modelo mais inclusivo, Dahl reconhece que a participação cidadã direta ainda é limitada principalmente ao processo eleitoral. Ele concebe que a democracia liberal representativa é a forma mais prática e sustentável de governo democrático em sociedades complexas e pluralistas.
A concepção liberal minimalista, portanto, centra-se na ideia de que a principal função da democracia é proporcionar um mecanismo pelo qual os cidadãos podem escolher seus governantes e, assim, exercer algum controle sobre o governo. Este modelo elitista enfatiza a importância das instituições eleitorais, das liberdades civis e dos direitos políticos, mas tende a minimizar o papel da participação cidadã direta e contínua na tomada de decisões políticas.
Em contraste, a teoria maximalista defende uma democratização mais profunda através da participação popular e da democracia direta, reforçando o poder decisório da sociedade (Pateman, 1992; Macpherson, 1977). Nesse modelo de democracia, os cidadãos não são apenas observadores passivos do processo político, mas envolvem-se ativamente como participantes informados e críticos. Eles desempenham um papel ativo na tomada de decisões e na deliberação sobre questões públicas, contribuindo para o bem-estar da comunidade como um todo, em vez de focar apenas em interesses individuais. Tal alternativa é essencial para a formação de uma verdadeira democracia. Pateman (1992) sugere que a participação ativa contribui para a educação política dos cidadãos, tornando-os mais informados e comprometidos com a governança democrática. Macpherson (1977) defende a ideia de uma democracia participativa como um meio de superar as limitações da democracia liberal representativa. Ele propõe que a participação direta pode corrigir desigualdades e proporcionar uma forma mais autêntica de controle democrático sobre as decisões que afetam a vida dos cidadãos.
A divisão descrita pela teoria se torna perceptível na prática política cotidiana ao observar que a consolidação do regime democrático em vários países do Sul global, desde o final do século XX, tem se constituído em um desafio contínuo, especialmente ao considerar a necessidade de ir além da dimensão minimalista da democracia. Pois uma democracia que se limita aos procedimentos formais não garante automaticamente os direitos sociais fundamentais a todos os cidadãos. Mesmo com os avanços na consolidação dos mecanismos institucionais democráticos, inclusive no Brasil, a partir da Constituição Federal de 1988, o incremento democrático não se materializou em uma democracia substantiva, onde todos os direitos fundamentais são plenamente atendidos.
Nessas circunstâncias, emergem déficits que se impõem por meio da desigualdade social, econômica e política, ainda que se evidenciem melhorias e avanços em índices de qualidade de vida a partir da instauração do regime político democrático no Brasil (Arretche, 2015). Outra consequência decorrente dessa perspectiva é o enfraquecimento das instituições de mediação política, produzindo um sentimento de desconfiança generalizada em relação ao sistema político (Moisés; Meneguello, 2013). Situação agudizada pela crescente participação das redes digitais, e da ausência de regulação, na formação da opinião e da agenda públicas. A questão é que, restrita às concepções e modelos procedimentais, a democracia não se mostra capaz de enfrentar, na totalidade, os problemas da igualdade e do desenvolvimento justo.
A ideia de que a democracia, por si, levaria à redução das desigualdades nos países centrais e de que as desigualdades nos países periféricos seriam, preponderantemente, enfrentadas por regimes autoritários não se confirmou ao longo dos séculos XX e XXI. Tampouco a desigualdade deixou de aumentar nos países centrais como a desigualdade foi relativamente diminuída nos países periféricos – sem que ela tenha sido eliminada – também quando estes país implementaram regimes políticos democráticos (Arretche, 2015). A questão, portanto, é reconhecer que a democracia pode criar, e efetivamente o fez, as condições para a redução da desigualdade, mas o faz na medida em que a sociedade organizada, em processos de participação e reinvindicação, conquista de governos a execução de políticas públicas de combate à desigualdade. Os procedimentos democráticos criam o espaço para a luta por políticas, mas não as criam por sim mesmo. Não é o “mercado eleitoral” que regula a igualdade e a desigualdade, mas a construção da capacidade de efetivar políticas. Portanto, a democracia quando vista apenas pelos aspectos procedimentais, tanto em sua versão minimalista quanto maximalista, é insuficiente para garantir a diminuição da desigualdade e a consecução da igualdade. De um ponto teórico, a supremacia das ideias liberais desconsiderou, ou ao menos subestimou, os aspectos vinculados às dimensões da justiça e legitimidade, o que conferiu sustentabilidade, já no campo da política, à manutenção de democracias insensíveis à sociedade. Bastava que seus ritos fossem seguidos.
A teoria e o constitucionalismo liberal não garantiram efetivamente a implementação de regimes democráticos pelo mundo. Nos termos de Eley (2005), foram os períodos concentrados de mudança, revoluções ou não, que concederam à democracia seus ganhos mais importantes. Estão na história as evidências efetivas de que a democracia evoluiu para além de sua dimensão jurídico-liberal por ação política da sociedade por direitos fundamentais.
A democracia como regime político é um produto do Século XX, já sob a tensão da organização dos trabalhadores e de luta por justiça social. O reconhecimento da igualdade formal dos indivíduos sem a igualdade social, como expressa por Rousseau ou Locke (Cassirer, 1980 e Gough, 1980) não foi, do ponto de vista da realidade histórica, suficiente para efetivar sociedades democráticas. O espectro do comunismo foi muito mais eficiente para que as sociedades de mercado aceitassem inclusões de teor distributivistas no sistema político e nas políticas de governo. Foram as reivindicações por políticas de materialização de direitos que efetivaram experiências de democracia substantiva, já no século XX.
É exatamente esse descompasso entre democracia procedimental e democracia substantiva que amplia o processo de desconfiança cultural em relação às instituições públicas, tais como governos e parlamentos, no específico, e regime democrático, no genérico. A ausência de soluções estruturais, em uma sociedade de hegemonia neoliberal, quanto à exclusão econômica e a progressão dos índices de desigualdade no mundo, intensifica o ceticismo em relação aos regimes democráticos, assim como aos partidos e lideranças que nele se integraram nas últimas décadas. Uma dinâmica onde, paradoxalmente, os mecanismos de participação e alteração das políticas econômicas, e não elas próprias, são identificadas como responsáveis pela pobreza e pela falta de perspectivas de ascensão social. Nesse contexto, apresentam-se as condições morais e políticas para a ascensão de lideranças e partidos críticos, ou que se manifestem criticamente, ao conjunto do sistema político.
Essa dinâmica tende a favorecer o crescimento de setores e campos políticos reacionários e autoritários, já que a relação elitista entre representantes e representados pode promover votos baseados em personalidades fortes em vez de políticas sólidas, aumentando o risco de desinformação política e apelo a discursos antidemocráticos. Mudde e Kaltwasser (2017) argumentam que esta tendência pode emergir como uma reação contra elites políticas, aproveitando a desconfiança popular e a desinformação. Outra abordagem explorada por Norris e Inglehart (2019) demonstra como reações culturais contra mudanças sociais e políticas podem levar ao apoio a líderes autoritários, sugerindo que as desilusões com a política tradicional e o elitismo alimentam o surgimento de tais líderes.
Nas últimas décadas, a ascensão da extrema direita tem desafiado a legitimidade e a eficácia das democracias em todo o mundo (Mudde, 2007; Foa; Mounk, 2017; Levitsky; Ziblatt, 2018; Norris; Inglehart, 2019). Diante desse cenário, agências como a Human Rights Watch e Freedom House demonstram uma erosão significativa na democracia liberal e a ascensão do autoritarismo em todo o mundo. Isso despertou um sinal de que as democracias podem estar em risco. O ressurgimento do autoritarismo e a emergência da extrema direita são tendências de impacto, observadas globalmente, e que acompanha a crise social e econômica que o modelo centrado no capital jogou o planeta. Lideranças políticas têm promovido uma agenda reacionária, com base em valores conservadores e representam uma tendência crescente na política europeia e das américas, onde partidos ou frações de extrema direita ganham apoio ao explorar temores sobre imigração, identidade nacional, desordem e alteração da hierarquia social. Esta ofensiva reacionária amplia e reforça a desconfiança em relação às instituições supranacionais como a União Europeia, por exemplo.
Na Europa, figuras como Marine Le Pen, da França, continuam a desempenhar papéis centrais no avanço da extrema direita. Le Pen, agora à frente do Reagrupamento Nacional (antiga Frente Nacional), mantém uma agenda firmemente anti-imigração e eurocética, defendendo o fechamento de fronteiras e maior soberania nacional frente à União Europeia. Na Itália, Matteo Salvini, líder da Liga, é outra figura de destaque, conhecido por seu discurso duro contra a imigração e a favor do nacionalismo econômico. Na Hungria, Viktor Orbán, primeiro-ministro desde 2010, tem consolidado um regime iliberal, do ponto vista da rejeição aos preceitos normativos. O governo Orbán investiu na restrição às liberdades civis, atacando organizações da sociedade civil e mídia não alinhada, promovendo uma política de “democracia cristã” anti-imigração e eurocética. No Reino Unido, o impulso para o Brexit, promovido inicialmente pelo Partido da Independência do Reino Unido (UKIP) e depois consolidado pelos Conservadores sob Boris Johnson, evidenciou uma forte tendência eurocética e nacionalista, resultando na saída do país da União Europeia em 2020. Além disso, Orbán e outros líderes nacionalistas têm promovido um discurso em defesa dos “valores tradicionais”, que se contrapõem às agendas progressistas sobre direitos humanos e questões de gênero, criando uma divisão cultural mais acentuada na Europa (Norris; Inglehart, 2019).
Essa tendência crescente de apoio a partidos de extrema direita reflete um ambiente político onde o medo da imigração, a defesa de identidades nacionais fortes e a desconfiança em relação a instituições supranacionais, como a União Europeia, são explorados para ganhar votos. Com a amplificação dessas questões pela internet e mídias sociais, esses líderes têm conseguido mobilizar apoio significativo, especialmente entre grupos que se sentem desamparados pelas elites políticas tradicionais e ansiosos quanto ao impacto da globalização e das mudanças demográficas (Norris; Inglehart, 2019).
A ascensão de líderes de extrema direita na América do Sul tem refletido essa tendência global de autoritarismo e reacionarismo, manifestada em diferentes contextos políticos e sociais. Na Colômbia, embora Álvaro Uribe tenha deixado o poder em 2010, ele continua sendo uma figura influente na política nacional como mentor de muitos líderes de direita, incluindo o ex-presidente Iván Duque, que governou de 2018 a 2022. Uribe é conhecido por sua postura firme contra as guerrilhas e pelo apoio ao setor empresarial, mantendo uma influência significativa nas estratégias da direita colombiana, mesmo enfrentando controvérsias relacionadas a acusações de vínculos com paramilitares e, portanto, com ações extralegais.
No Brasil, Jair Bolsonaro, eleito em 2018, consolidou-se como a figura central da extrema direita no país, utilizando uma retórica anti-establishment, nacionalista e ultraconservadora. Sua campanha se destacou pelo forte discurso contra a corrupção, o crime e o “marxismo cultural” (Machado, 2019). Bolsonaro foi impulsionado por um eleitorado impactado pela campanha de desinformação sobre corrupção que culminou no impeachment de Dilma Rousseff em 2016, agudizado pela crise econômica que afetou o país entre 2015 e 2017. Durante seu governo (2019-2022), Bolsonaro implementou políticas neoliberais e pró-mercado em complementação às medidas implementadas pelo governo de Michel Temer, entre 2016 e 2018. O governo de Jair Bolsonaro aprofundou as privatizações e uma abordagem de desregulamentação ambiental, ao mesmo tempo em que jogou o país em polêmicas sobre sua gestão anticientífica da pandemia da COVID-19, além das tensões com o judiciário. Mesmo com a derrota eleitoral em 2022, contudo, Bolsonaro ainda mantém grande influência entre setores da direita e do conservadorismo no Brasil. Estes setores de extrema direita não se desarticularam com sua derrota eleitoral.
No Chile, José Antonio Kast, líder do Partido Republicano, emergiu como uma força de extrema direita nas eleições presidenciais de 2021, quando chegou ao segundo turno, sendo derrotado por Gabriel Boric. Kast é defensor de uma agenda econômica neoliberal e de valores conservadores, defendendo cortes de gastos públicos e a manutenção da ordem social. Sua ascensão ocorre em um contexto de polarização política e após os grandes protestos de 2019, que expuseram a insatisfação da população com a desigualdade econômica e o alto custo de vida. Kast, em suas campanhas, faz referências à ditadura de Augusto Pinochet como um período de ordem e crescimento econômico, o que ressoou entre setores conservadores da sociedade chilena.
Na Argentina, a figura emergente é Javier Milei, economista de viés libertário que ascendeu à política como líder do partido La Libertad Avanza. Milei ganhou destaque com suas duras críticas ao intervencionismo estatal, à classe política tradicional e à economia regulada, propondo reformas radicais, como a dolarização da economia e o corte drástico de ministérios. Apoiando-se em uma retórica incendiária contra a “casta política”, Milei tem atraído grande parte do eleitorado jovem, desiludido com as políticas econômicas que levaram o país a uma prolongada crise, marcada por inflação descontrolada e alta dívida externa. Sua ascensão em 2023, culminando em sua eleição para a presidência, representou um marco significativo na guinada da política argentina para a direita libertária.
Essa tendência de extrema direita na América do Sul segue um padrão semelhante ao observado na Europa e nos Estados Unidos, onde líderes de ultradireita, extrema direita e nacionalistas se beneficiam da insatisfação com a economia e política tradicional e da percepção de que as elites não atendem aos interesses populares. Neste sentido, lideranças e partidos ascenderam ao poder ou ganharam influência por meio de processos democráticos em contextos de crises econômicas, políticas e sociais significativas, explorando o descontentamento popular e propondo agendas de mudança radical, em sentido regressivo e desdemocratizante. Ou seja, por mais paradoxal que pareça, a democracia é um caminho eficiente para a ascensão de projetos antidemocráticos.
A eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, marcou um ponto de inflexão na história política brasileira. Sendo uma figura radicalizada ascendeu ao poder através de um sistema democrático que, ironicamente, ele próprio coloca em risco. Esta situação paradoxal levanta questões profundas sobre a natureza do sistema político brasileiro e os desafios que ele enfrenta para manter sua estabilidade. Baseado no sufrágio universal e no voto direto é projetado para refletir a vontade popular de maneira justa e inclusiva. Contudo, a eleição de Bolsonaro expôs falhas significativas nesse sistema. A campanha foi marcada por uma retórica polarizadora, o uso estratégico das redes sociais e uma capacidade de mobilizar sentimentos de insatisfação e de desilusão com a classe política tradicional. Sua vitória não pode ser vista apenas como uma escolha popular, mas também como um sintoma de um sistema em crise, onde a confiança nas instituições democráticas permanece em declínio.
Bolsonaro capitalizou sobre o descontentamento generalizado com a corrupção, a violência e a ineficiência do governo. Ele se apresentou como um outsider, apesar de sua longa carreira política, prometendo uma ruptura com as práticas políticas tradicionais. Esta estratégia se revelou eficaz em um contexto de frustração popular, mas também trouxe à tona a fragilidade das instituições democráticas brasileiras. Sua retórica frequentemente atacava a mídia, o judiciário e outras instituições democráticas, minando a confiança pública nelas. Além disso, a utilização de redes sociais e disseminação de desinformação foram componentes críticos de sua campanha. Estas ferramentas permitiram a Bolsonaro ultrapassar os canais tradicionais de comunicação e conectar-se diretamente com os eleitores, muitas vezes usando mensagens simplistas e polarizadoras. Este fenômeno não é exclusivo do Brasil e reflete uma tendência global onde líderes populistas usam novas tecnologias para mobilizar apoio e desafiar as instituições estabelecidas.
A eleição de Bolsonaro também levantou questões sobre a eficácia do sistema político em proteger os valores democráticos fundamentais. A capacidade do sistema de lidar com uma coalizão política e social que desafia constantemente suas normas e regras é uma prova de sua resiliência. No entanto, também expôs vulnerabilidades significativas. A interferência nas investigações judiciais, ataques à liberdade de imprensa e tentativas de enfraquecer as instituições de controle são exemplos de como Bolsonaro testa os limites do sistema democrático.
Uma leitura atenta da realidade social e política da sociedade brasileira revela que as raízes do autoritarismo e da desigualdade são profundas e persistentes. A democracia no Brasil tem sido superficial, fundamentalmente procedimental, utilizada para manter o poder e a hegemonia das elites. Essas questões representam um desafio para a compreensão da realidade global, do Sul global e da América do Sul, em especial. As bases da evolução econômica e a forma como o capitalismo se estruturou no Brasil e no continente o torna diferente de outras regiões. A instabilidade econômica e a política marcada pelo autoritarismo são algumas das características apontadas por grande parte da literatura como responsáveis pela falta de uma cultura política democrática (Freyre, 1986; Holanda, 1969).
O processo de democratização do Brasil assinala, com destaque, uma incongruência entre a existência de uma democracia formal, normativa e procedimental, e uma democracia substantiva que se traduz em desigualdade social. Isso gera nos cidadãos um sentimento de abandono por parte do Estado, que, na prática, resulta em desconfiança e falta de interesse na política. Soma-se a isso, “a influência de um passado de instabilidade política e econômica, bem como de um legado autoritário que tem obstaculizado a construção de uma cultura política verdadeiramente democrática no país” (Baquero, 2001, p. 99). Essas são as características de uma cultura política híbrida, que combina elementos formais e informais de natureza histórica, além da coexistência de valores favoráveis à democracia e valores conservadores e de falta de interesse político. O contexto brasileiro sinaliza as dificuldades de uma cultura política democrática, efetiva e inclusiva.
Os estudos de Castro (1996) destacam que, diante do histórico de autoritarismo, presentemente, surge um sentimento de nostalgia por parte de uma geração que não vivenciou, mas que ouviu relatos sobre aquele período, criando a impressão de que o passado era melhor do que o presente. Essa nostalgia contribui para a cultura política de ambivalência descrita por Moisés (2005), que caracteriza o brasileiro como alguém com traços simultaneamente autoritários e democráticos. Moisés argumenta que essa ambivalência decorre da herança do período autoritário, que moldou as atitudes e percepções políticas dos cidadãos, refletindo-se na forma como eles se relacionam com regimes democráticos e autoritários.
Nota-se que a herança autoritária brasileira não apenas permeia a estrutura política e econômica, mas também molda a percepção de uma parcela significativa da sociedade, que, por meio de memórias seletivas ou narrativas idealizadas, vê o passado autoritário como uma época de maior estabilidade e progresso. Essa nostalgia, muitas vezes alimentada pela insatisfação com as limitações e ineficiências do atual sistema democrático, fomenta a ideia de que o autoritarismo poderia oferecer soluções mais rápidas e eficazes para os problemas sociais e econômicos. Essa visão, no entanto, ignora os efeitos opressivos e excludentes desses regimes, que restringiam liberdades e perpetuavam as desigualdades estruturais. Além disso, tal nostalgia contribui para o distanciamento político, alimentando um ciclo de desconfiança nas instituições democráticas e aprofundando a crise de participação cidadã. O desafio contemporâneo, portanto, vai além da criação de instituições formais democráticas. Deve ser aprimorado por meio de uma transformação profunda na cultura política, capaz de fomentar o engajamento cidadão, combater as desigualdades, distribuir direitos sociais, socializar em maior escala os recursos públicos e fortalecer a crença em uma democracia substancial, que seja capaz de garantir inclusão, justiça social e equidade em todos os níveis.
Assim, o processo de democratização no Brasil e em outros países do Sul global revela uma tensão entre os avanços institucionais e a falta de uma democracia substantiva que atenda plenamente aos direitos fundamentais dos cidadãos. Enquanto o modelo liberal minimalista privilegia o mecanismo eleitoral e a representatividade, a teoria maximalista de democracia propõe uma maior participação cidadã, algo ainda distante da realidade brasileira.
Contudo, democracias com maior participação da sociedade igualmente não tem se mostrado suficientes para atingir a situação de igualdade entre os diferentes setores da sociedade. Seria necessário que esta maior participação e as garantias civis estejam associadas à execução de políticas sociais que efetivamente obstruam os mecanismos de concentração de renda. O aprofundamento da razão neoliberal caminha no contra fluxo deste objetivo. O concentracionismo econômico, as políticas de austeridade, a autonomização das autoridades financeiras fizeram por aumentar a pobreza no globo.
A democracia permite espaço político para a contestação e obstrução dessa tendência e processo econômico de concentração de riqueza e aumento de desigualdade. O grande paradoxo é que os regimes democráticos, igualmente, permitem o crescimento de políticas de aprofundamento de desigualdades. Além disso, os regimes democráticos permitem que se apresentem políticas antidemocráticas. Ou seja, políticas, partidos e líderes que investem contra a própria democracia através dos instrumentos de consulta democrática, tais como as eleições para parlamentos e governos. A ascensão de líderes autoritários e de extrema direita, como Jair Bolsonaro, expõe as vulnerabilidades das democracias contemporâneas, especialmente em contextos de crise social e econômica. Desta forma, o desafio para a humanidade, em especial para as amplas camadas mais pobres, reside em transformar a democracia formal em uma democracia substantiva, capaz de garantir não apenas a participação política, mas também a justiça social e a equidade, assegurando a proteção dos direitos fundamentais para todos os cidadãos. O que significa dizer que a democracia não poderá limitar-se a aspectos procedimentais, mas terá que garantir a obstrução e a impugnação de políticas de ultra concentração de riqueza. O vínculo entre economia e política, em um sistema democrático substantivo, deverá ser agendado pela ideia de igualdade.
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