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Meia volta sobre seus próprios passos

A mobilização direta da base de extrema direita é cada vez mais custosa e insuficiente a Bolsonaro.


"Os setores de direita que iniciam esse distanciamento de Bolsonaro terão que enfrentar a encruzilhada de como fazê-lo sem, no entanto, perder a condição dirigente para manutenção da política de austeridade neoliberal" - Montagem / Reprodução



A falta de apoio do comando das Forças Armadas à tentativa de decretar o "Estado de sítio" teria sido a principal razão para Bolsonaro demitir o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, e os comandantes das forças singulares, segundo diversos jornalistas.

Tem sido aceita, por muitos comentadores, a versão de que Bolsonaro tentou recrutar os oficiais generais para a defesa de seu governo através de medidas de exceção, como o aventado Estado de sítio e a ação no STF contra os governadores. Tentativa que, somada às medidas de mobilização ideológica, como a comemoração do golpe de 1964, poderia oferecer à sua base ideológica melhores condições políticas para sair da defensiva e arremeter em seu apoio.


Tudo indica que essa manobra de Bolsonaro não resultou positiva e pode ter ampliado ainda mais a defensiva política na qual ele, cada vez mais, se meteu. As sucessivas entrevistas e declarações do General Santos Cruz, ex-ministro do governo Bolsonaro, já poderiam indicar um afastamento do alto oficialato das Forças Armadas do bolsonarismo. Santos Cruz declarou, na mais recente dessas manifestações que “As Forças Armadas e seus comandantes têm consistência grande. Não se imagine que se possa lançar as Forças Armadas em uma aventura. Os militares não ficam embarcando em qualquer canoa. Não é fácil mexer com as Forças Armadas politicamente. Os comandantes são todos muito discretos. Não se envolvem com política. É uma gente séria.”


Independente de se considerar que tais assertivas de Santos Cruz, sobre nacionalismo, constitucionalismo e instituições de Estado, não encontram evidências ou bases na trajetória e no passado recente dos altos oficiais militares brasileiros, o que é incontroverso é a consagração do distanciamento político entre uma fração de oficiais generais e o presidente. Assim como também a intenção deste grupo militar descontente em construir uma espécie de via alternativa à Lula e Bolsonaro.


Simultaneamente e convergente com esta dissidência militar, Bolsonaro teve que assistir outro deslocamento de muita importância política em seu bloco de sustentação original. Uma carta aberta à sociedade de banqueiros, rentistas e consultores faz duras críticas no que diz respeito ao enfrentamento à covid-19 e lança uma crítica de conjunto ao governo, caracterizando a situação econômica e social do Brasil como "desoladora".


Da mesma forma que em relação ao tema dos militares, podemos ter uma consideração crítica em relação à carta dos banqueiros, uma vez que não apresenta medidas de financiamento de políticas de diminuição da desigualdade e combate à pandemia, como a taxação sobre grandes fortunas e sobre dividendos, política já aceita por expressivos governos liberais como o de Biden, por exemplo; mas não podemos deixar de acentuar o significado político dissidente expresso no manifesto.


É relevante o fato da carta dos banqueiros ser incontroversa ao caracterizar a situação econômica como de recessão. Em artigo publicado em 12 de maio no Brasil de Fato busquei tratar das diferenças entre os militares na ativa das forças singulares e os generais bolsonaristas já postados nos cargos políticos do núcleo de direção do governo Bolsonaro; assim como caracterizei o precário vinculo da burguesia central, rentista e bancária, com Bolsonaro como uma relação “dependurada” nos resultados econômicos.


O espectro do apoio ao governo Bolsonaro é, hoje, menor do que o espectro que compôs o bloco no poder durante o ano de 2019. Mas não é a questão da quantidade de setores o dado mais relevante, tampouco seu “tamanho” no processo econômico, mas sim sua posição e capacidade de direção política. Os setores vinculados ao bolsonarismo não são centrais, política ou economicamente, em suas respectivas classes sociais ou frações. No que diz respeito ao empresariado, a partir da dissidência aberta pelo setor rentista, politicamente central e globalizado, Bolsonaro reduziu seu apoio ao empresariado periférico, não central, globalizado subordinadamente e vinculado às atividades de serviços de baixo valor agregado, como a importação, legal ou não, de bens de consumo não duráveis. Aquilo que André Gunder Frank[1] chama de “lumpen-burguesia” ou burguesia degradada, analisando a relação entre centro e periferia e entre direção política e subordinação política, me parece mais relevante nesta situação.


O documento assinado por Ciro Gomes, João Dória, Eduardo Leite, João Amoedo e Luiz Henrique Mandetta, simpaticamente chamado de “manifesto dos presidenciáveis”, também é expressão desse deslocamento político do andar de cima. O documento faz uma profissão de fé do sistema democrático, o que é muito relevante neste reposicionamento, mas se exime de identificar objetivamente as causas do avanço do autoritarismo e o próprio autoritarismo em si; ou seja, de identificar a devida responsabilidade política do bolsonarismo e de Bolsonaro no processo de erosão da democracia. De fato, o que não é dito na carta é tão ou mais importante daquilo que é efetivamente escrito.


O documento é, efetivamente, um esforço de reorganização da centro-direita buscando se posicionar no tabuleiro da sucessão política do governo Bolsonaro como uma alternativa ao que seria uma polarização entre Lula e Bolsonaro. Tal alternativa busca se credenciar para distintos cenários: de que esta sucessão se dê pelas eleições de 2022 ou pela via de algum impedimento de Bolsonaro, eventualmente protagonizado por setores da direita preocupados com a hipótese do naufrágio do Bolsonaro vir a ser de todos que lhe apoiaram.


O conteúdo significante do documento, portanto, não está em seu texto, mas no escopo restrito de assinaturas. Trata-se de uma movimentação política duplamente reativa. Em primeiro plano ao próprio deslocamento das lideranças da alta burguesia financeira e, em segundo, à identificação de que poderá se articular uma ampla aliança multiclassista em torno da liderança de Lula da Silva.


De forma análoga, o mesmo ocorre com a burocracia militar. Com o recente distanciamento do alto escalão militar na ativa, as relações com este campo da burocracia se reduziram a generais aposentados, portanto fora das tropas, e com a base média das carreiras militares e policiais-militares, como o baixo oficialato e os graduados. Também, neste caso, um setor secundário na capacidade de liderança e direção política.

O campo de apoio a Bolsonaro está se reduzindo. A base no Parlamento tende muito mais a responder a um amplo espectro de apoio social e, principalmente, empresarial do que fundar ou produzir um campo social de apoio. Desta forma, a base parlamentar é cada vez mais fluída e, por isso mesmo, Bolsonaro é cada vez mais dependente dela e sua relação tenderá a ser progressivamente instável.


A mobilização direta da base de extrema direita é cada vez mais custosa e insuficiente para Bolsonaro. Esse empresariado secundário como essa base militar-policial são setores que se mantém mobilizados e ativos na defesa de uma política e uma retórica ideologizada, favorável ao Bolsonaro. Contudo, diante da incapacidade de enfrentar a pandemia e a recessão, a cada vez que essa base reacionária se movimenta, com uma retórica neofascista e antidemocrática, com invocação do AI-5, com referências ao golpe de 1964 e sugestões inconstitucionais associadas ao negacionismo científico, mais se deteriora a relação de Bolsonaro com os setores de direita mais democráticos e globalizados.


Os setores de direita que iniciam esse distanciamento de Bolsonaro terão que enfrentar a encruzilhada de como fazê-lo sem, no entanto, perder a condição dirigente para manutenção da política de austeridade neoliberal. E mais, como demonstrar ao grande capital globalizado que são uma alternativa política melhor para seus interesses e sua política macroeconômica. Um esforço para construir uma saída de tipo Biden, que descarte do bloco no poder o neofascismo sem que o neoliberalismo perca a capacidade de direção política desse bloco.


Solução que parece ser uma espécie de volta para trás sobre suas próprias pegadas. Um esforço de simulação para parecer que esta aliança com o neofascismo não tenha passado de uma história inventada, e que a crise que vivemos se deve, única e exclusivamente, ao exagero bolsonarista saído de controle.


[1] FRANK, Andre Gunder. Lumpen-Burguesia:Lumpen-Desarrollo: Dependencia clase y politica en Latinoamerica. Buenos Aires: Ediciones Periferia, 1973. 196 p.


* Publicado originalmente no Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko

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