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A grande regressão: introdução para argumentos pós neoliberais*


Trabalho, partido e mercado na crise neoliberal: Novo projeto social-democrata / Jorge Branco... [et al.]; organizado por Sandra Bitencourt - Canoas : Consultor Editorial, 2021. 204 p.; 14 cm x 21 cm. ISBN 978-85-93813-45-0 - Disponível em eBook Kindle na amazon.com.br


A crescente rejeição às democracias liberais, a destruição sistemática das políticas protetivas do Estado social, o crescimento da ideologia tradicionalista e do conservadorismo, a emergência do reacionarismo e a crescente alforria dos valores e premissas autoritárias levaram autores como Heinrich Geiselberger (2019) a se referir a tal processo de redução de direitos e corrosão da democracia como a “grande regressão”. Uma volta atrás, uma reação da direita e do capitalismo no difícil, tortuoso e dialético caminhar da civilização em busca da igualdade e da liberdade.


Essa volta atrás toma dimensão conceitual no sentido de que falamos de uma desconstituição, e da intenção de desconstituir, de um conjunto muito forte de valores e premissas que se tornaram norma por força da dinâmica das lutas sociais, da luta ideológica, da alternância dos ciclos de expansão do capitalismo e do confronto entre sistemas econômicos concorrentes. Essa grande regressão global se relaciona com os ciclos sucessivos de crise de acumulação e com as respostas, econômicas e políticas, apresentadas pelas classes dominantes e pelas classes dominadas.


A profunda crise global de acumulação de capital vivida neste século XXI, fermentada contudo desde a década de 80 do século XX, e a crescente hegemonia política neoliberal formaram as condições para essa ofensiva de valores, premissas e atores reacionários em vários países pelo globo, como Indonésia, Polônia, Israel, Ucrânia, Índia e, particularmente, no Brasil. Em alguns casos, como a Bolívia, o reacionarismo foi derrotado por uma rápida reação das forças progressistas e pelos movimento sociais. Em outros, contudo, o reacionarismo consolidou-se, tornando esses países em centros difusores da regressão civilizatória, como Hungria e Turquia. Em todos, entretanto, a base política que estrutura essa hegemonia política é a implantação de medidas de destruição do Estado social baseadas na regressão conservadora e na objetivação da democracia e da esquerda como responsáveis por essa grande crise e inimigos a serem eliminados.


No Brasil, esse processo regressivo se aguçou e demonstrou em toda sua capacidade destrutiva a partir da década de 2010. Entre estarrecidos e acuados, o campo progressista e a esquerda vivenciaram um processo de expansão política do reacionarismo e da grande onda de desconstituição no que diz respeito às difíceis conquistas de direitos fundamentais e de alguma dimensão de um Estado social conquistados no país. Essa expansão se deu por meio de um movimento político verdadeiramente de direita “frentista”, liderado por setores reacionários e aglutinando toda a direita brasileira. Ao invés de uma frente de esquerda, emergiu uma frente de direita, reunindo neofascistas, fundamentalistas religiosos, negacionistas, moralistas e conservadores tradicionalistas, aristocratas, pequena e lúmpen burguesia em uma forte convergência com o pensamento e com as frações de classe dirigentes do campo político neoliberal. Esta frente reacionária se unificou em torno dos postulados conservadores, autoritários e neoliberais, marcados pela austeridade, proteção ao lucro e à propriedade, militarismo, punitivismo e inflexibilidade penal e policial; anticomunismo e antipetismo; alinhamento internacional com os países líderes desse bloco, como Estados Unidos e Israel; adesão ao cristianismo conservador e aos valores morais da família tradicional, combate à “ideologia de gênero”; nacionalismo de direita; uma forte rejeição ao “iluminismo”, ao conhecimento e ao racionalismo científico, ao liberalismo político e à modernidade, portanto e paradoxalmente, às próprias premissas da democracia representativa.


A força dessa emergência reacionária aglutinou, também, aquela direita que, por razões de seus vínculos com a grande burguesia interna, nos termos de Nicos Poulantzas (1977), se mantinha no campo dos acordos desenvolvimentistas com a esquerda e com a classe trabalhadora. Acordos os quais ensejaram, não sem revezes e contradições, as experiências desenvolvimentistas, socialdemocratas e protetivas do que houve e há de Estado social no Brasil. Essa direita migrou rapidamente para o interior desse emergente campo reacionário.

Essa expansão reacionária criou as condições para a formação de um novo bloco no poder no Brasil, materializado a partir do golpe político do impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, em 2016. A operação golpista serviu como organizador dos postulados que deram base a essa coalizão reacionária e ao bloco no poder estabelecido desde o Governo Temer e mantido no Governo Bolsonaro. Foi esse golpe que permitiu a essa frente reacionária chegar ao governo, quando essa frente se transforma em um bloco no poder sob hegemonia e direção da fração rentista da burguesia a partir do alinhamento com as premissas do neoliberalismo e da efetiva priorização das políticas de desregulamentação do trabalho, das reformas do sistema de proteção social, privatizações e concessões de empresas e serviços estatais, controle do déficit orçamentário, maior associação comercial à política dos Estados Unidos, autonomia do Banco Central e liberalidade normativa ao fluxo de capitais.


O programa desse bloco no poder se caracteriza pelo que Nancy Fraser (2018) chama de neoliberalismo ultrarreacionário. Tal bloco mostrou capacidade de reorganizar as várias frações da burguesia por meio do aprofundamento das políticas rentistas e atrai algumas parcelas dos trabalhadores através de elementos e ideias anti-iluministas conservadores no que diz respeito aos costumes, fundamentalismo religioso e autoritarismo.


As condições para a emergência de uma direita reacionária com capacidade de influência política foram maturadas durante décadas, no mínimo, em um processo histórico complexo. Contudo, no Brasil é no início da década de 2010 que a direita reacionária se torna relevante e torna-se viável politicamente, encontrando uma consonância maior de seus postulados e interpretações com o senso comum, com os sentimentos em relação ao quadro político e econômico, mais disposto neste período a aceitar explicações e racionalizações políticas e culturais reacionárias.


A crise política que levou ao impeachment da Presidenta Dilma Rousseff em agosto de 2016 e à ascensão do reacionarismo; no entanto, não foram “raios do céu azul”. Se optamos por utilizar metáforas ou hipérboles, é mais perto da realidade utilizarmos a imagem de uma erupção vulcânica, em que o evento cataclísmico, aparente e desnudado, é resultado de um longo processo de acumulação e desenvolvimento das condições necessárias, até que essas se tornem suficientes para a eclosão do fenômeno.


A erupção aconteceu. Os acontecimentos políticos e jurídicos, em uma distinção quase impossível de ser feita, ocorridos entre 2011 e 2018 apontam para um processo de emergência política da direita reacionária em aliança com a direita conservadora. As ações dos setores vinculadas ao grande capital rentista internacional que provocaram a forte crise econômica de 2011 e 2012, a reação à política de favorecimento ao setor produtivo, hegemônica nos governos lulistas, a crise mundial da imigração, os conflitos e manifestações de junho de 2013, os protestos durante a realização da Copa do Mundo de 2014 no Brasil, a renhida disputa eleitoral de 2014, o questionamento sobre a legitimidade da posse de Dilma Rousseff, a forte crise recessiva de 2015, a assunção ao governo de um frente ampla de direita com o impeachment em 2016, a tensão criada pelas revelações das investigações da “Operação Lava Jato” em 2017 e – decisivamente para o desdobramento político do período – a condenação judicial de Lula da Silva, com a derivada impugnação de sua candidatura à presidente, e a eleição de Jair Bolsonaro em 2018, transformaram esta década em uma das mais inquietantes da história do Brasil.


Essa emergência da direita reacionária brasileira modificou o conteúdo doutrinário do que se caracteriza de direita. A direita tradicional, de valores autoritários e conservadores, porém vinculada à tradição desenvolvimentista ou liberal, perdeu protagonismo político e viu crescer uma direita mais radicalizada, igualmente autoritária e conservadora, mas que abdica dos conceitos mais nacionalistas e estatistas para se afiliar decididamente às razões do neoliberalismo e fundi-las com alguns dos pressupostos mais clássicos do fascismo, como a luta cultural, a criminalização do adversário e o anti-igualitarismo (CODATO; BOLOGNESI; ROEDER, 2015).


A partir da transição do regime autoritário para o regime democrático liberal, desde 1985, o pensamento neoliberal passou por um processo de reorganização com base no ativismo de uma aliança entre empresários e intelectuais que passaram a organizar o pensamento neoliberal e outras variantes liberais a partir de organizações não governamentais de difusão de pensamento, favoráveis à economia de mercado em superação ao pensamento que seria conservador e estatista. Simultaneamente, enquanto as organizações populares se ampliavam e o pluripartidarismo se estabelecia e, com ele, os partidos de esquerda nasciam ou se institucionalizavam, o pensamento de caráter neoliberal ganhou espaço e dinamismo para estabelecer um processo de convencimento da sociedade sobre a supremacia dos modelos neoliberais de sociedade, de economia e de governo, em um processo de reconfiguração de sua hegemonia política e cultural (CASIMIRO, 2018).


Durante grande parte desse período, a ideia de ser conservador, de direita ou defensor do autoritarismo estava contida, cerceada por certa supremacia de valores democráticos, tanto à esquerda quanto à direita. Contida e cerceada, porém não superada. Já neste século XXI, esse quadro se modificou. Foi exatamente durante o auge do período lulista, defrontada com certa vantagem política das ideias mais à esquerda ou ao menos progressistas, que a direita reacionária iniciou seu processo de reorganização e emergência política, em uma ofensiva cujos precedentes somente são encontrados no processo golpista de 1954 a 1964. Segundo Rocha (2018, p. 111), “A partir da redemocratização se dizer de direita passou a ser algo desconfortável. [...] Foi apenas em meio auge do Lulismo [...] que aos poucos tal vergonha começou a se dissipar”

Deu-se a “tempestade perfeita”, o desenvolvimento simultâneo de mais de uma condição para que um fenômeno se desenvolva. O fator que produz essa convergência, que realiza a interação entre essas condições, é a hegemonia política da grande burguesia internacional rentista, formada pela supremacia dos valores individualistas, do anticomunismo, da rejeição ao público e comunitário em articulação com o controle de aparelhos ideológicos eficientes – como o oligopólio privado dos meios de comunicação – e do aparelho de Estado, o que deu os contornos materiais para que esse bloco pudesse reorganizar os mecanismos de acumulação necessários à manutenção da dominação. Como afirma Armando Boito (2018, p. 12), “[...] entramos numa época de restauração da hegemonia do capital internacional e da fração burguesa a ele integrada”.


Esse encontro produziu uma síntese política abertamente contrária às políticas de inclusão social do período lulista (2003 a 2016), assimilando a defesa da eliminação do Estado de bem estar social e a livre regulação do mercado. Analisando as opiniões dos participantes dos protestos de 2015, Helcimara Telles (2019) concluiu que o crescente ativismo e formação de um pensamento à direita se dá pela rejeição às políticas de distribuição de renda aos mais pobres, em uma clara expressão de valores e ideologia de direita reacionários.


Esse aspecto, de outro modo, foi destacado por Henrique Carlos de Oliveira de Castro (1998) ao abordar o paradoxo da relação entre a aceitação da democracia, como forma e procedimento, com uma cultura política não democrática e autoritária. Castro refere haver uma causalidade entre a formação social-histórica e valores culturais e ideológicos dessa mesma sociedade na formação de sua cultura política. Restam as evidências de que há bases para a relação entre autoritarismo e neoliberalismo.


Para o pensamento liberal e para o modelo democrático-liberal em concreto, não há, efetivamente, uma universalidade do sujeito, e sim um modelo de sujeito ideológico e classista, que exclui aqueles que não atingem seus requisitos históricos, como riqueza, gênero, raça e, até mesmo, liberdade formal (LOSURDO, 2015). A construção do valor simbólico é, portanto, uma dimensão da dominação de classe, da hegemonia de um bloco de classes sobre outro. Se no campo da economia o valor ganha objetividade na capacidade de troca e na taxa de mais valia, é no campo da política e da cultura que a subjetividade ganha valor, e quem controla os mecanismos de subjetividade possui a capacidade de valorar os comportamentos, a estética, a classe social, a retórica, ou seja, a posse efetiva desses valores e a capacidade recorrente de produzi-los.


O vínculo com os valores conservadores e tradicionais não se dá sob a forma de uma reposição da história, mas sob a dinâmica da reconstrução da história – transformando valores históricos em valores míticos, refundando o passado em uma atualidade diferente. Não se trata de retornar ao passado, mas exercer a hegemonia sobre o presente. O reacionarismo da atualidade não é a simples reprodução, portanto, dos fascismos, autoritarismos e conservadorismos de outrora, mas uma atualização destes pela fusão com a razão neoliberal e com a atual hegemonia rentista global. É o que Lilia Moritz Schwarcz chama de um novo regressivo, em que valores do passado são reativados no presente.


Já a emergência dessa onda de governos conservadores, que inundaram a política contemporânea, não se limita a retomar ao passado, nem funciona como mera reencarnação dos fascismos e populismos perdidos na história da primeira metade do século XX. O certo é que se trata de fenômeno tão moderno como complexo. (SCHWARCZ, 2019, p. 228).


Esse passado é reconstruído constantemente, modelado pelo atrito entre a hegemonia e a resistência ou contra-hegemonia. Essa reconstrução se dá pela constante atualização dos valores de uma sociedade, valores que são a expressão da relação entre dominantes e dominados, sendo a base na qual se assenta a hegemonia e onde podem se assentar novas hegemonias. No entanto, os valores não se reconstroem por si, não “andam” sozinhos, muito menos são produto de geração natural. São as classes dominantes, por meio dos aparelhos ideológicos, que lhes atualizam à sua imagem e interesses, ainda que as classes dominadas as assimilem nas condições de sua vida material concreta. A naturalização da desigualdade e a repulsa à igualdade é, portanto, um resultado do processo cultural de reprodução da hegemonia política das classes dominantes.


A aceitação da desigualdade é um processo em que os valores dos dominantes não se tornam universais e interclassistas por imposição meritocrática ou por forças da natureza, mas são naturalizados na cultura política moderna e incorporados ao sistema de valores dos dominados por decorrência da hegemonia política a que estão submetidos por meio da ação objetiva dos instrumentos de dominação, entre eles o Estado e sua força normativa-coercitiva. A desigualdade social se dá pelo estabelecimento simultâneo de posições de força na base econômica da sociedade, como classe social, e a hierarquia política se estabelece na superestrutura estatal, como fração de classe dirigente. É neste nível que se dá a forma material da implantação da desigualdade como valor social naturalizado: a institucionalização de práticas políticas, incorporadas normativamente ao sistema, como o personalismo, populismo, privatismo e clientelismo, além da ilusão da meritocracia e da competição justa entre indivíduos normativamente iguais, mas socialmente desiguais. Constrói-se, assim, a convergência para a naturalização da desigualdade. A desigualdade surgiria, desse modo, como uma expressão razoável e aceitável da dinâmica do sistema democrático moderno e da formação econômica capitalista. A narrativa do passado e a capacidade de naturalização da desigualdade tornam-se as chaves para o estabelecimento da hegemonia e da supremacia política. Esta capacidade de universalizar sua visão de mundo está na base da desconstituição das políticas de equilíbrio social, portanto da desconstituição do Estado como provedor de igualdade.


Esse processo de desenvolvimento de hegemonia política burguesa-liberal é irregular, porém constante. A própria batalha continuada pela reinserção ao capitalismo global estava em jogo para as classes dominantes brasileiras. Fazer referência a uma hegemonia de classe não significa dizer que não haja conflitos e contradições. Ao contrário, os conflitos de classe dão base à ideia de hegemonia, de um sujeito social exercendo supremacia sobre seu diferente no processo político e econômico, tanto na esfera da grande classe à qual pertence quanto em relação às classes diferentes subordinadas e dominadas (GRAMSCI, 2014). Os conflitos internos às classes sociais, entre frações de classes, organizam e desorganizam as alianças e frentes entre as classes e frações de classes. A existência e longevidade de uma hegemonia de valores burgueses não quer dizer que não tenha havido alternâncias e impasses entre suas frações, ou mesmo sua modificação por imposição da força dos contrários.


Nesse período de democracia formal, sem a coerção própria de um regime autoritário, mas com a organização normativa da dominação consensualizada, houve o crescimento de movimentos e organizações da classe trabalhadora e de setores não vinculados às classes dominantes e uma ampliação, tanto esfera de governos locais, subnacionais e nacionais, de medidas de compensação e distribuição de renda que resultaram em restrita, mas fundamental, diminuição da pobreza. “No Brasil, sob a democracia, diminuiu sensivelmente a desigualdade de renda entre os mais ricos e os extremamente mais pobres, muito embora seu grau seja muito alto” (ARRECTCHE, 2015, p. 426). Enfim, a abertura de espaço estatal aos interesses dos trabalhadores e a relativa diminuição da desigualdade não sublimam as relações econômicas da dominação – ao contrário, lhe dão legitimidade e capacidade simbólica, normativa e cultural de reprodução. Contudo, isso significa que a força dos trabalhadores e outras frações e classes em desvantagem na luta por igualdade também encontram e encontraram caminhos para crescer e impor conquistas, em processo de movimentos e posições.


A incapacidade de construção da igualdade substantiva entre os indivíduos, demonstrada pela economia de mercado, ampliou as condições éticas e políticas para a contestação da igualdade como forma normativa e valor universal. Nesse contexto, cresceram as adesões e motivações ligadas à preservação da ordem antiga, dos privilégios e do status quo, em detrimento dos ideais que propunham nova ordem social no sentido da igualdade substantiva, fundamentalmente a partir da predominância ampla da razão neoliberal e suas assertivas minimalistas de superioridade da forma mercado, da competição individual e de retração do Estado.


A defesa de direitos coletivos e de igualdade social deixou, assim, de ser um elemento virtuoso, e a utopia democrática foi substituída por valores de autopreservação de frações, classes e grupos que, na dinâmica da economia de mercado, ampliaram sua dominação. Frustrada a utopia liberal da liberdade e a utopia socialdemocrata da igualdade, eclodiu o pesadelo neofascista da intolerância, da guerra permanente e do individualismo, em contexto de escassez econômica e insatisfação social crescentes.


A emergência política da direita reacionária, neste século XXI, se baseia na narrativa de que a democracia e a esquerda, como seu sujeito, estabeleceram uma ruptura com os valores tradicionais, da harmonia e da ordem do passado brasileiro de democracia racial e paz. Esse processo pode ser compreendido como a emergência organizada das resistências às mudanças da sociedade moderna e uma “reafirmação dos pilares da sociedade tradicional”. (MESSENBERG, 2019, p. 40).


Paradoxalmente, essa criminalização da esquerda como a responsável pelas crises da democracia é o próprio reconhecimento do papel da esquerda nos esforços de construção da igualdade e da democracia substantiva no mundo. Foram as distintas, diferentes, conflitivas e, na maioria das vezes, contraditórias políticas, estratégias e doutrinas de esquerda que estiveram na base da universalização das noções de direitos fundamentais e democracia ao longo do violento século XX.


Direitos, democracia, bem estar, república, são hoje valores e conceitos muito mal tratados, até mesmo rejeitados por amplos setores arrastados mais recentemente para a miséria. Uma ou mais gerações inteiras não compreenderam a verdadeira “guerra entre mundos” que se estabeleceu para dar viabilidade à noção de direitos e de igualdade. O sistema de saúde pública, a educação gratuita, a licença maternidade, férias remuneradas e aposentadoria não são resultados de processos naturais e que sempre estiveram à disposição. São produtos das revoluções, das contrarrevoluções, das concessões, das negociações, das modernizações do Estado capitalista. Mesmo que resultantes de distintas estratégias e de distintas reações, sempre houve uma invariável nos processos dos quais emergiram os direitos: a esquerda, seja revolucionária, socialdemocrata, institucional, comunista ou desenvolvimentista, foi protagonista da positivação e materialização dos direitos. Seja em momentos de vitórias revolucionárias ou em momentos de impasse e equilíbrio na correlação de forças, os direitos fundamentais foram conquistados pela classe trabalhadora, pelos partidos de esquerda, pelos sindicatos, pela intelectualidade progressista, por movimentos feministas ou antirracistas, pela revolução ou pela democracia. Em nenhum momento, o desenvolvimento dos direitos foi produto da intenção ou do projeto da direita, do conservadorismo ou do reacionarismo. Ao contrário, a direita é o grande sujeito, em nome da burguesia rentista, da grande regressão dos direitos e da democracia que assistimos no mundo atual.


Ainda que não tenha havido uma transição completa, o regime democrático liberal permitiu que se reestabelecesse uma disputa de hegemonia em um contexto de reorganização da dominação burguesa no Brasil não mais como autoritarismo e exclusão dos trabalhadores do pacto hegemônico, mas por meio da liberdade formal e de mecanismos de inclusão dos trabalhadores no pacto. A atualização da forma do Estado sob um regime democrático permitiu a construção de movimentos e alternativas materiais de caráter anti-neoliberais, assim como permitiu a visibilidade de valores igualitaristas, de certo potencial contra-hegemônico, insuficientes, todavia, para alterar a hegemonia neoliberal.


Neste espaço de atrito, na margem de contato entre a hegemonia e a contra-hegemonia, se desenvolveram alternativas políticas, tanto no campo do pensamento quanto no campo da práxis. Diz Geoff Eley (2005, p. 572): “A menos que as questões da justiça social sejam banidas definitivamente da agenda política e que o capitalismo se imunize contra a crítica ética e igualitária, os argumentos socialistas continuarão a ser vitais para as esperanças democráticas radicais”. Evidentemente, não estão banidas.


Se as contradições e paradoxos do capitalismo são materiais e concretas, há também que se compreender que este avanço da aliança entre o reacionarismo e o neoliberalismo produziu um contexto de imensas dúvidas estratégicas e crises da esquerda. Não é plausível reduzir este ascenso ao simples fenômeno da manipulação das classes trabalhadoras. Se a hegemonia cultural e política é construída no campo da fricção e do atrito, a dedução a que podemos chegar é que houve também um espaço aberto para o crescimento do reacionarismo dado pela esquerda, por suas incompreensões sobre a realidade – é a isso que se pode chamar de crise.


Em um mundo em crise econômica, a implosão da União Soviética e o crescimento do neoliberalismo tatcheriano encontraram no Brasil uma ascensão de uma esquerda popular, classista, que, na sequência de seu crescimento, faz uma forte inflexão no sentindo da construção de um bloco com o empresariado industrial local, que a levou ao governo, compartilhando com aquela fração burguesa a direção do bloco, então, no poder. Essa estratégia não foi suficiente – como se poderia supor ao menos para aqueles que não acreditariam em um anti-neoliberalismo em um país só – para impedir a dinâmica internacional de financeirização radical da economia, e o resultado é que, sob os pés dessa esquerda, irrompeu uma direita com vocação dirigente e radicalmente neoliberal.


A fórmula do lulismo, a corrente majoritária na esquerda brasileira no início deste século XXI, tem seu ápice político exatamente no momento em que o desenvolvimento das forças produtivas, as transformações do neoliberalismo ultraconcentracionista e transnacional, desmontam a estrutura social que, justamente, deu um verdadeiro empuxo histórico à essa esquerda desenvolvimentista. A classe operária, organizada em grandes corporações, deu progressivamente lugar a uma classe trabalhadora precarizada e individualizada – o proletariado precarizado, no conceito de Ruy Braga (2012), e isso se transformou em terra nada firme para a esquerda.


A estratégia, o programa, o modelo, nunca se aprontam definitivamente; toda transformação gera novos desafios, novas inclonclusões e, desse ponto de vista, é preciso dedicar-se ao processo dialético da reflexão e da ação (GRAMSCI, 1984; 1988). Portanto, não se trata de apensar fragmentos, mas de um processo complexo de construção de uma nova alternativa de esquerda, o que necessariamente terá que assimilar o legado das experiências da esquerda revolucionária, da experiência soviética e da social-democracia tradicional, assim como também das experiências mitigadas e autárquicas que se desenvolveram nos governos no país e no continente latino-americano, em especial. Porém, a simples reformulação do legado não é suficiente, é preciso estabelecer os novos paradigmas a serem combinados com tal legado.


A esquerda está frente a uma encruzilhada no que diz respeito ao programa, à estratégia, à tática e, principalmente, à construção do sujeito da ação revolucionária. O que é condição necessária para formular uma visão de revolução. Devemos trata-la não só no campo da tática (o que sempre nos assalta os sonhos e impele à prática), mas nos campos da estrutura e do modelo econômico, assim como no campo da cultura – o que se relaciona com uma questão da maior envergadura e dificuldade teórica: quais valores sobre os quais essa sociedade pode emergir ainda que gradualmente e, desta para a questão derivada, como construí-la? Reforma e revolução, para o limiar do século XXI, não parecem antítese uma da outra, mas uma contraposição superada em um capitalismo em desajuste.


Um dos debates teóricos mais relevantes que se travou na esquerda neste ciclo de hegemonia neoliberal é o da democracia. Esta continua sendo central, mas, neste momento, com dois sentidos autocríticos simultâneos e conexos: superar a ideia burocrática da tradição vanguardista, para a qual bastaria substituir a fração dirigente para que o Estado mudasse de caráter, e superar a visão meramente procedimental, como na tradição social-liberal, para a qual deve haver uma separação política eterna entre governantes e governados. Duas armadilhas de urso para uma nova esquerda.


A ideia de democracia para uma nova estratégia de esquerda deve estar vinculada, garantidos os direitos civis e fundamentais, à capacidade de consulta, controle e reformas do Estado e da economia. Dito de outra forma, da transformação das normas que restringem a democracia ao procedimento eleitoral, à produção e ao mercado. Enfim, vinculada à ideia de reformas profundas das relações de dominação, de produção e de distribuição das riquezas, portanto de superação da ideia liberal de democracia para muito além da mera igualdade formal entre os indivíduos.


Referências

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